Capítulo 1

Londres, 1881

Os olhos cinzentos de Simeon Lee eram visíveis acima de um lenço que ele amarrara para assim impedir a entrada do fedor da cólera: o odor libertado pelos corpos que se decompunham em albergues e casas mortuárias.

– O Rei bateu-nos à porta – murmurou ele.

– Não lhe podemos chamar outra coisa? – implorou o seu amigo Graham, que, também ele, ostentava um lenço húmido sobre o nariz e a boca. – Não gosto dessa designação. Dá a entender que lhe devemos alguma coisa. E não é o caso.

– Não obstante, não deixa de cobrar – retorquiu Simeon em voz baixa.

– Parece-lhe que vamos ter outra epidemia?

– Espero que não.

Com efeito, ele tinha a esperança de que não fosse mais do que um surto local da doença.

Os dois, que haviam passado anos juntos a preparar-se para uma carreira a curar os doentes e a tranquilizar os saudáveis, caminhavam pela Grub Street, no coração do antigo núcleo romano da cidade de Londres. Os edifícios daquela via estavam entregues ao mister da imprensa – jornais e publicações periódicas que catalogavam as intrigas, prazeres e tristezas diárias da vida. A sarjeta no meio da rua corria cheia de tinta.

Simeon afastou o lenço que lhe cobria o rosto quando chegaram aos alojamentos que partilhavam.

– Temos de lhe encontrar o ponto fraco – disse. Pensava na doença em termos animais, como se fosse um cão raivoso. Demasiado pequena para ser vista a olho nu, a bactéria era, todavia, suficientemente forte para arrastar vagas de homens, mulheres e crianças para o túmulo. Um assassino pequeno e insidioso. – Todas as doenças têm um ponto fraco.

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O Dr. Simeon Lee tinha feições longas e esbeltas e um corpo também longo e esbelto, que subia agora com agilidade as escadas até aos alojamentos de ambos – um sótão, para dizer a verdade –, por cima de uma gráfica cujas prensas não conheciam descanso. Era um lugar que lhe convinha, visto que podia trabalhar enquanto a maioria dos outros descansava. E era barato. Muito barato. Depois de meses nos quais a sua investigação se vira paralisada por falta de dinheiro, tinha de economizar cada centavo que pudesse.

– Ela anda por aí, consigo senti-la – continuou ele, sem hesitar. – Raios, há um século que nos conseguimos proteger da varíola. Porque não da cólera? – Olhou pela janela inclinada e encardida. A escuridão acentuada de um smog de dezembro retribuiu-lhe o olhar.

– Já me disse isso, uma ou duas vezes. Está a ficar um pouco obsessivo. – Graham hesitou. – Sabe, não está a tornar-se muito popular no hospital.

– E isso afeta-me imenso.

Ele não se importava nem um pouco com o que aquelas provectas criaturas de fartas suíças que administravam o King’s College Hospital pensavam dele. Se trabalhassem nos pardieiros e enxovias que rodeavam St. Giles talvez vissem as coisas de forma diferente.

O amigo encolheu os ombros, ciente de que não valia a pena insistir.

– Como é que pretende descobrir essa sua cura milagrosa?

– Como!? – Simeon quase se riu da pergunta. – Com dinheiro. Preciso de dinheiro. Preciso da Bolsa Macintosh. – Tirou a gravata e sentou-se no banco danificado pelo fogo que haviam resgatado de uma calçada em Marylebone. – Entretanto, essa gente continua a sucumbir nas suas casas como se se tratasse da Peste Negra. – Girou no assento chamuscado, fazendo por encontrar uma posição confortável. – Um homem pobre nesta rua tem menos hipóteses de chegar aos trinta anos do que eu de ser armado cavaleiro. Meu Deus, se Robertson e os outros nos dessem ouvidos, podíamos fazer alguma coisa! – O amigo absteve-se de falar enquanto Simeon se lançava a toda a brida, criticando o corpo docente da escola de medicina do King’s College, o qual repetidamente demonstrava a sua total incapacidade de considerar uma única ideia nova. – Tempo e dinheiro. É tudo o que é preciso para encontrar uma cura. Tempo e dinheiro suficientes.

A sua ira resultava da frustração. Poucas coisas o conseguiam irritar tanto quanto a perspetiva de ver todo o seu trabalho de três anos ficar a ganhar pó na secretária. Todos os meses, o conselho de bolsas da faculdade de Medicina se perdia em “hums” e “ahs” perante as suas propostas, enquanto mais homens, mulheres e crianças continuavam a sucumbir à doença.

– Acha que a vai conseguir?

– É entre mim e Edwin Grover. Ele quer a bolsa para a sua investigação de analgesia.

–Ele é brilhante.

– No papel, sim. Em termos práticos, não passa de um cretino. É tudo demasiado teórico. Nem sequer pensa na forma de introduzir uma agulha no braço de uma costureira.

Bateu com os nós dos dedos na mesa, irritado. Grover passava os seus dias num apartamento no andar superior de uma bela casa na Soho Square. Raramente o deixava. Não tinha necessidade de o fazer. Nem interesse, provavelmente.

– E se não a conseguir?

– Nesse caso, meu amigo, vou varrer ruas a troco de uns centavos. – Puxou pela madeixa que lhe caíra para a testa.

– Parece-me coisa para nos deixar enregelados.

– Sem dúvida que é.

Graham aclarou a voz:

– E aquele trabalho em Essex? Sempre lhe dava dinheiro.

Simeon ergueu as sobrancelhas, surpreendido.

– Meu Deus, já nem me lembrava disso.

O assunto fora esquecido praticamente no mesmo instante em que Simeon poisara o telegrama que tinha recebido no dia anterior.

Livro: "A Casa de Vidro"

Autor: Gareth Rubin

Editora: Lua de Papel

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– Um tio seu, certo?

– Não propriamente. Primo do meu pai.

– Bem, não deixa de ser um trabalho remunerado.

Era verdade, mas nada tinha de atraente.

– Cuidar de um pároco rural que se convenceu de que está às portas da morte, embora provavelmente esteja em condições de enfrentar dez assaltos no ringue com o Daniel Mendoza.

– Simeon, sabe que precisa desse dinheiro.

Ele ficou a pensar. Não havia absolutamente nenhuma dúvida nesse aspeto. Mas fazia-o sentir-se como um mercenário barato, tratar de um homem que provavelmente não precisava de mais cuidados médicos do que um “cortar no vinho do Porto e dar um passeio rápido de vez em quando”.

Não obstante, aquele dinheiro poderia trazer um novo fôlego ao seu progresso rumo à cura.

– É uma opção – admitiu. – Embora só Deus saiba o quanto eu lhe poderia sacar. Um pároco rural não está propriamente a nadar em dinheiro.

– Isso é verdade. Trata-se, ao menos, de um sujeito agradável?

Simeon encolheu os ombros.

– Sem dúvida um desses velhos sacerdotes ensimesmados que passam todo o seu tempo a ler tratados sobre os cálculos do bispo de Usher, que nos diz de que o mundo tem seis milénios.

– Bem, podia ser pior. É só ele em casa?

– Ah. Pois. – Simeon riu-se para consigo. – É aí que as coisas se tornam um pouco… intrigantes.

– Como assim?

– É o escândalo da família.

– Escândalo? Vamos, continue.

– Não sei nem a metade, o meu pai não me quis contar os pormenores. Parece que o irmão do pároco foi morto pela respetiva esposa em circunstâncias estranhas. Um deles estava louco, penso eu. Eu devia descobrir. É verdade, é verdade, uma história assim sempre pode constituir uma pausa no tédio do trabalho. Mas não, confio na Providência: o conselho da Bolsa Macintosh há de aprovar o dinheiro primeiro.

Na tarde seguinte, Simeon encontrava-se sentado num banco duro e bem polido, à porta de uma das salas de reuniões do King’s College. Edwin Grover, elegantemente vestido, estava sentado num banco idêntico, em frente.

– Ainda a investigar a cólera? – perguntou Grover.

– Sim. Ainda.

Grover não tinha mais perguntas.

Um empregado idoso saiu da sala de reuniões.

– Doutor Grover? Pode fazer o obséquio de me acompanhar?

Grover assim fez. A porta fechou-se com um estrondo que ecoou no corredor.

Passou-se uma hora até que ele saísse, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. Simeon praguejou baixinho ao ver aquilo; agora, era a sua vez.

Entrou, sentou-se numa cadeira de madeira diante de um painel de cinco homens e expôs os seus planos para curar um dos maiores males da época.

– Doutor Lee. Estivemos a analisar a sua candidatura, bem como os documentos que a fundamentam – informou-o um deles, taciturno. – Uma questão vinha-nos constantemente à ideia.

– E que questão é essa, senhor?

– Que provas temos de que vai, de facto, chegar a algum lado com isto?

Não era uma pergunta amistosa.

– Pode ser mais específico?

– Este seu material parece – o homem olhou para os papéis – inconsequente. Tanto quando sabemos, nada, concretamente, resultou disto.

– Não me parece que…

– Ao contrário, digamos, do historial do outro candidato, do qual constam, pelo menos, dois artigos publicados na Lancet.

Algures no interior das paredes, os canos de água trepidaram e silvaram com o ar preso.

– Tenho o maior respeito pelas publicações académicas…

– Enquanto tudo o que nos é dado ver no seu trabalho é uma série de pedidos de mais financiamento.

Simeon cerrou os dentes antes de retorquir:

– Acredito que o retorno justificará o capital, senhor.

– Mas qual retorno? E quanto capital?

– Penso que trezentas libras seriam…

– Trezentas libras!? Por uma doença que agora se encontra confinada aos bairros pobres? – Murmúrios de concordância do resto do painel. – Os que vivem nesses lugares estão acostumados a viver nessas condições. Nascem nelas. Hão de viver toda a sua vida nelas.

– E se os senhores passassem tanto tempo na sua companhia quanto eu, saberiam que muitos deles estariam melhor se não vivessem nessas condições.

– O que quer dizer com isso? – perguntou o médico idoso.

– O que quero dizer, senhor, é que não lhe posso numerar quantas crianças com menos de cinco anos de idade já vi, todas elas condenadas a nada mais do que uma vida breve e cheia de dor. Por vezes, tem sido tentador abreviar-lhes a vida naquele momento, em lugar de assistir ao seu inevitável declínio.

– Bem, isso é entre si e Deus. Aqui, estamos preocupados com o seu pedido para uma bolsa.

– Com certeza. Lamento muito esta minha distração – disse Simeon, desculpando-se. – Para responder a essa sua precisa pergunta: ainda não conseguimos identificar material proveniente de fontes humanas com o qual possamos criar uma vacina. Em minha opinião, animais não humanos poderão produzir o material de que necessitamos. Por exemplo, se expusermos os nossos parentes mais próximos, os gorilas, à doença, e lhes extrairmos o sangue, é possível que esta consanguinidade possa proporcionar proteção contra o germe.

– Então, ele agora quer-nos a todos pendurados nas árvores – murmurou um dos outros.

Quando regressou aos seus alojamentos, Simeon deu com uma garrafa de vinho escuro aberta em cima do baú que usavam como mesa. Tratou de beber o que restava, olhou para o amigo que ressonava mansamente na sua cama e olhou pela janela. A rua estava silenciosa como um túmulo.

Reparou então que a garrafa estava poisada nalguma coisa: um telegrama. No dia anterior, tinha enviado um telegrama ao pai, pedindo-lhe pormenores sobre aqueles violentos acontecimentos que envolviam os seus parentes em Essex, dois anos antes, e que tanto haviam dado que fazer a muitas línguas maldosas. A resposta fora rápida. “Os seus deveres são puramente médicos. Cumpra-os e nada mais. Tanto quanto sei, havia a suspeita de crimes nefastos antes mesmo de a violência ocorrer. Não é nenhuma surpresa para mim. A Turnglass House sempre teve algo de corrupto e maligno. Deixe isso para Deus e para a Lei.”

Simeon não pôde deixar de notar o facto de o seu pai – que normalmente não era um homem dado a devaneios poéticos – ter dito que era a própria casa que tinha “algo de corrupto e maligno” e não a família. E isso era curioso.

Ele nunca conhecera o ramo distante da família que residia na Turnglass House. Tinha crescido centenas de quilómetros a norte, entre as ruas empedradas de York, sendo o único filho sobrevivente criado por pais que por ele apenas tinham um interesse passageiro, e enviado para um colégio interno aos dez anos de idade. O seu pai, um advogado com um escritório poeirento no qual atendia às necessidades de aristocratas também eles poeirentos, aceitava a medicina como uma profissão razoável, embora supusesse que a sua esposa provavelmente houvesse preferido que Simeon se tivesse dedicado a uma atividade mais elegante na Harley Street. A subsequente desaprovação que a mãe demonstrara perante uma carreira dedicada à investigação e ao combate às doenças infeciosas nada fizera para extinguir a sede do filho.

Então, vamos para Essex, pensou ele para consigo.

A ilha de Ray situa-se nos pântanos salobros da orla costeira de Essex. Trata-se, ou não, de uma ilha que depende das marés – encontrando-se, como é o caso, na confluência dos estuários dos rios Colne e Blackwater. Na maré alta, fica bastante isolada e a única casa que nela se ergue parece estar à deriva. O mar que corre entre o continente e Ray é coberto por um emaranhado tapete de sargaços, quais dedos de inúmeros homens afogados. Arrastadas ao longo dos riachos do estuário, estas algas flutuam até à vila de Peldon, no continente, onde o lago diante da estalagem, a Peldon Rose, há muito constitui um armazém para aqueles que complementam os seus rendimentos como pescadores de ostras com a venda de brandy e tabaco trazidos do continente sem pagar o ruinoso imposto de consumo. Na realidade, o fundo do lago é feito de madeira e pode ser içado para, assim, drenar a água, revelando  os barris besuntados com alcatrão que ali ficam escondidos. Os ditos barris abastecem todas as estalagens de Colchester com vinho e todas a lojas de miudezas com rendas.

Na verdade, apenas um centavo do imposto de consumo é cobrado em Essex, embora um quarto dos produtos sujeitos ao dito imposto em todo o país seja importado através do condado em questão. E não se pense que os fiscais desconhecem a existência deste comércio; todavia, desde que, certa manhã, vinte e dois deles foram encontrados com a garganta cortada num barco, já há alguns anos, os seus amigos não se mostram muito empenhados em incomodar os comerciantes locais.

Ao lado de Ray fica a ilha de Mersea, vizinha de Ray e com dez vezes o seu tamanho, contando com cerca de cinquenta casas e uma praia de cascalho conhecida como Hard. A salicórnia dourada e a arroxeada alfazema marinha decoram ambas as ilhas, as quais têm uma base de cascalho repleto de argila que atrai aves pernaltas e flutuantes, como os ostraceiros e as tadornas.

No entanto, os visitantes humanos destas ilhas devem tomar cuidado.

Na maré baixa, surge uma passagem estreita, à qual chamam Strood, que emerge do continente e é revelada pela água salgada que então recua. Segue até Ray, atravessando os menos de dois quilómetros de largura desta ilha e continuando depois para Mersea. Mas quem a quiser percorrer tem de atentar no horário das marés. O perigo não reside apenas em dar por si isolado em Ray, com aquela casa obscura, mas mais no facto de qualquer pessoa apanhada na própria Strood, quando a água salgada sobe, correr o risco de se ver reclamada pelos sargaços. Quase todos os anos, desde que os Romanos assentaram pé naquela pequena ilha pela primeira vez, pelo menos um homem ou uma mulher deram por si emaranhados nas algas. E ainda por lá flutuam, sem produzir nenhum som, sem reclamar, as suas mãos procurando-se lentamente.

Simeon podia sentir o perfume da alfazema marinha no vento quando uma charrete puxada por um pónei o deixou à porta da Peldon Rose. Durante o trajeto, o condutor gabara entre gargalhadas a nada legítima indústria local, e Simeon tinha olhado para o lago, mas apenas lhe conseguira ver a água turva e salgada. Todavia, o próprio ar sabia a sal. Ardia um pouco no fundo da garganta, e tentara engolir por duas ou três vezes para se livrar do sabor antes de dizer a si mesmo que em breve se acostumaria àquela sensação como se fizesse parte da paisagem.

– Boa tarde, senhor – ouviu. O dono da estalagem, um sujeito magro com um par de enormes suíças, estava parado à porta, a fumar um longo cachimbo. – Vai entrar?

– Vou, sim, e com todo o gosto – respondeu Simeon alegremente, levando a mala de viagem ao ombro e a sua maleta médica de couro preto na mão que lhe sobrava.

– Muito bem, então. Há de querer comer qualquer coisa com um caneco de cerveja pra empurrar, digo eu.

– Parece-me muito bem.

Simeon olhou para a construção. Era uma ampla estalagem rural de um só piso, caiada de um branco agora pardacento por conta do inverno. Ele estava com fome e a perspetiva de um prato de comida quente alimentara-o durante aquela hora de viagem desde a estação de Colchester, a caminho da casa do pároco local, Oliver Hawes – Dr. Hawes, para sermos mais precisos, sendo que o dito cavalheiro era Doutor em Teologia.

– Toca a entrar, então.

Aceitou de bom grado. A taberna era ocupada por sete ou oito sujeitos com roupas de pescador. Cada um deles fumava o seu cachimbo longo e fino, branco, idêntico ao do proprietário. Simeon deu por si a pensar se algum deles seria capaz de distinguir o seu do dos seus amigos. Também lá estavam três mulheres, qual trio de Parcas, a um canto, examinando-o silenciosamente.

– Toca a entrar, rapaz – reiterou o proprietário. – Sempre bem recebido aqui na Rose. Largue a sua mala no chão. Isso mesmo. Jenny! Jenny! Um naco de pão e uma dúzia, não, dúzia e meia de ostras. Ele parece ’tar com fome. Mexe-te, rapariga!

Nem fez por perguntar se o pedido satisfazia as necessidades do seu novo cliente. Passados poucos segundos, Jenny, uma menina com cerca de dez anos, apareceu com pão e uma pratada de ostras. O proprietário entregou um pequeno jarro de cerveja a Simeon e deu-lhe a entender que devia comer em pé, ao balcão. Parecia que toda a estalagem estava à espera de que ele começasse a fazê-lo ou que dissesse ao que vinha. Escolheu começar pela comida. Mas se esperava que a conversa recomeçasse enquanto se alimentava, enganou-se. O ar parecia imóvel, perturbado apenas pelo som que ele, ou algum outro, produzia ao beber a cerveja. Dez minutos depois, acabou de comer.

– São quatro xelins, três centavos e uma história – fez-lhe saber o proprietário.

Simeon riu-se.

– E que história seria essa?

– Pra nos dar a saber a todos o que é que o traz por cá.

Parecia um pedido perfeitamente amistoso, e não qualquer espécie de advertência, pelo que Simeon não teve problemas em responder:

– Sou médico. Vim cuidar de um parente meu.

– E quem é ele, então?

Simeon perguntou a si mesmo como seria que eles se referiam ao seu quase tio.

– O doutor Hawes.

– O pároco Hawes! – As sobrancelhas do proprietário alçaram-se e ouviu-se um murmúrio surdo na sala. – É seu parente.

– O meu pai é primo dele.

– Ah, sim? Nunca pensei que a família do pároco fosse doutro lugar que não daqui.

– Para dizer a verdade, nem o conheço.

– Não, pois, se não for de Mersea ou de Peldon, não o havia de conhecer. Ouvi dizer que ele estava doente.

Seguiu-se um murmúrio geral, mas o proprietário era claramente o porta-voz de todos os presentes.

– Vou vê-lo hoje à noite e já fico a saber.

O proprietário pareceu preocupado.

– Espere até de manhã. A maré está a chegar.

– Muito obrigado, sinceramente – retorquiu Simeon. – Mas tenho de ir ainda esta noite. O doutor Hawes está à minha espera.

– Morty, podes levá-lo? – perguntou o dono a um dos homens que não mostravam o menor pejo em escutar a conversa.

– Eu sou o barqueiro – disse o dito Morty. Tinha mais de sessenta anos e era pequeno, mas estava em boa forma, como tem de estar um homem que rema nos riachos e mares de Essex. – O barqueiro sou eu.

– Parece-me muito bem.

– Mas vou pra casa agora. Pra minha lareira.

– A Strood é segura nesta altura? – quis saber o proprietário.

– Deve ser. A água vai continuar a subir, mas ele consegue chegar lá.

– Bem, parece-me perfeito – disse Simeon. Queria ir-se embora. – Pode indicar-me o caminho?

Toda a população da estalagem olhou pela janela. Não chovia, mas passava das seis horas e já estava um breu de inverno.

– Vai precisar duma lanterna – disse o proprietário, parecendo pouco convencido de que um jovem da cidade, provavelmente de Londres, se tivesse lembrado de levar tal coisa.

– Tenho uma.

– Botas pra travessia?

– Não sabia que precisava. Mas hei de me safar.

Olhou para as suas botas de couro que lhe davam pelo tornozelo. Bem, fosse como fosse, já tinham visto dias melhores.

– Então, veja onde é que põe os pés. É sempre em frente.

A estrada passa a ser a Strood. Não tem como se enganar quando estiver em Ray. A Turnglass House é a única na ilha.

Simeon estava satisfeito.

– É um nome estranho. De onde é que vem?

– Só tem de olhar para o cata-vento quando lá chegar. Vê logo. – O proprietário hesitou um pouco, como se tentasse decidir se devia tocar num assunto delicado. – Não é má gente, o pároco Hawes. Um pouco estranho às vezes. Mas tem tratado bem a cunhada depois de… bem, o senhor sabe. – Parecia estar a sondar, para perceber exatamente o que Simeon sabia.

O escândalo da família. De certeza que aquela gente sabia mais do assunto que ele. Justificava uma boa conversa, pensou.

– Sim, eu sei que ela matou o irmão dele.

O proprietário pareceu um pouco aliviado ao ouvir isto.

– Certo. Pois. Ainda bem. Não queria que fosse apanhado de surpresa quando ouvisse isso.

– De todo. – O pai de Simeon dera-lhe os pormenores, mas mostrara-se vago quanto à forma como Florence tinha matado o marido, James, irmão de Oliver. – Mas não faço ideia do que aconteceu, exatamente.

– Não faz ideia, hein? – O homem parecia um pouco cético e pareceu ponderar o que dizer em seguida. – Pergunte ali ao
Morty.

O visado olhou para Simeon.

– Então, quer dizer que não sabe?

– Não, para dizer a verdade, não.

Morty encolheu os ombros.

– Bem, a família é sua. São assuntos seus. – Era estranho pensar que o homem tinha razão: eram assuntos dele, embora Simeon nunca tivesse conhecido nenhuma das pessoas envolvidas. Uma família, pensou ele, podia ser um poço de estranhas ligações. – Eu levei o corpo… do seu tio James, ou seja lá o que le chama… fui eu quem o levou da casa. E num estado terrível que ele ‘tava. – Simeon sentiu uma curiosidade que tanto tinha de profissional como de humana. – Cara inchada. Amarelo. O mal tinha-se instalado. – Ele fez uma pausa. – Infação, é o que le chamam, rapaz – tinha pronunciado a palavra com cuidado.

– Qual infeção? O que é que aconteceu?

Morty deu de ombros como se estivesse a ensaiar uma história que todos conheciam.

– Ela feriu-le a cara. Atirou-le uma garrafa e o vidro quebrou-se. O mal instalou-se. Deixou-le a carne pret’aqui, amarel’ali. – Apontou para a sua própria bochecha e mandíbula. – Tud’inchado com’um porco.

Então, Florence cortara o rosto de James com uma profundidade suficiente para que, mais tarde, uma septicemia o vitimasse. Devia ter sido um ataque e tanto.

– Ele era um homem bonito antes disso – ajuntou uma das três Parcas. – O mais jeitoso do condado.

– Porque é que ela fez tal coisa? – perguntou Simeon. Era um interesse mórbido, mas, se todos sabiam, porque não ele?

Morty abanou a cabeça tristemente.

– Nunca preguntei. Foi uma coisa ruim que se deu aqui. Não quero remexer muito nisso. Só levei o caixão pro barco, remei até Virley com ele e então levei-o pra St. Mary. Agora, ‘tá nos torrões. Vá lá perguntar-le o que quiser saber.

– Morty – advertiu a Parca que falara antes.

– Bem. – O homem bebeu um pouco da sua cerveja, meditabundo. Permitiu-se uma pausa enquanto todos o imitavam. – Sab’onde é qu’está a sodona Florence agora?

– Não.

Morty olhou à vez para cada um dos amigos, os quais retribuíram o seu olhar carregado.

– Não há de tardar a saber.