1. Conheci Henrique Vieira esta semana, quando ele falou para uma plateia de algumas dezenas de pessoas, espalhada pelo chão, sofás e cadeiras de um amplo apartamento na Zona Sul do Rio de Janeiro. Crente, cristão, teólogo, pastor evangélico, Henrique electrizou a sala, onde provavelmente não haveria muitos outros crentes evangélicos (se é que mais algum). Não era o ambiente onde ele cresceu, ou passa grande parte do tempo, mas dava para ver que tanto faz. Dava para ver que ele electrizará qualquer plateia.

Não como um pastor ultra-conservador, como tantos que se multiplicam e bradam Brasil fora, sobretudo não como aqueles com poder político e mediático: Crivella (prefeito do Rio), Macedo (tio de Crivella, líder da IURD), Feliciano (deputado federal, pastor da Assembleia de Deus) ou Malafaia (tele-evangelista que tem ajudado a eleger prefeitos, vereadores). Mas como alguém feminista, anti-racista, anti-homofobia/transfobia, anti-patriarcado, anti-latifúndio, activista da legalização do aborto. Alguém que já foi vereador por um partido de esquerda (PSOL, o mais próximo do Bloco português) e defende que esquerda e fé não só não são incompatíveis, como terão de dialogar para que o Brasil mude.

2. Eu não estava no Rio de Janeiro em Março, quando Henrique Vieira falou para uma Cinelândia lotada, durante a celebração inter-religiosa pela morte de Marielle Franco. A Cinelândia é um lugar de manifestações, a praça clássica do centro carioca, a do Theatro Municipal, da Biblioteca Nacional, do Museu de Belas Artes, do Cinema Odéon e também da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, onde Marielle Franco se sentava na primeira fila do plenário, única mulher negra vereadora, até ser assassinada a tiro, no centro do Rio, na noite de 14 de Março.

Depois de conhecer Henrique, vi o vídeo dos três minutos e pouco em que nessa noite ele fez vibrar a praça, entre gritos, aplausos e lágrimas. Transcrevo quase na íntegra as suas palavras, depois da saudação à família de Anderson Gomes (o motorista assassinado com Marielle) e à família da vereadora:

“Jesus, negro, favelado da Maré. Marielle, negra, favelada, da Maré. Jesus chegou metendo bronca no templo. Marielle chegou metendo bronca na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A cruz não foi capaz de silenciar a voz de Jesus, e aqueles tiros não foram capazes de silenciar a voz de Marielle. (…) Os coronéis da fé, os vendilhões do templo, Crivella, Malafaia e companhia, matariam Jesus hoje. Eles não controlam a fé, a irmandade de Francisco de Assis, de Chico Mendes, de Teresa d’Ávila, de Martin Luther King, de Marielle Franco, de João Baptista, de Jesus de Nazaré. Eles não controlam esse povo preto, esse povo pobre. Esse povo que usa o nome de Jesus para promover o amor e a graça. O sonho ainda está vivo. É preciso respeitar a dor. A dor é um solo sagrado. Se estamos chorando? Estamos. Se nos sentimos fracos às vezes? Sentimos. Mas as nossas lágrimas e as nossas fraquezas vão mover a estrutura desse mundo. E nós ainda sonhamos. Está de pé o sonho por um país em que os negros não sejam culpados até que se prove o contrário. O sonho de um país em que as mulheres derrotem de vez o machismo. O sonho em que seja justa toda a forma de amor. O sonho em que o parlamento seja ocupado por indígenas, quilombolas, camponeses, sem-tecto, mulheres negras. O sonho em que nenhuma criança vai passar fome. Em que não haverá latifúndio. Não haverá desigualdade social. Não haverá ricos nem pobres. Porque a justiça vai fluir. Porque chega: negros não voltarão para a senzala; LGBTI’s não voltarão para o armário; mulheres não voltarão para a submissão. E os nossos sonhos não vão ficar num caixão, porque eles estão vivos. Nós somos a semente. Nós somos o futuro. Nós somos a revolução.”

3. O apartamento onde conheci Henrique é a nova morada de Antonia Pellegrino e Marcelo Freixo, ela, roteirista e activista feminista, ele já no terceiro mandato como deputado estadual do PSOL, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, e por duas vezes ex-candidato à prefeitura carioca (perdeu para Eduardo Paes em 2012, e para Crivella em 2016).

No Rio é comum alguns políticos fazerem esta espécie de comícios domésticos, falarem em casa de pessoas com uma rede extensa de contactos. Uma forma de motivarem plateias que podem ser multiplicadores, e eventualmente contribuintes financeiros. Era o caso de Freixo, que nas campanhas anteriores contou de forma decisiva com estas contribuições, e na noite de terça-feira, na sua própria casa, cinco exactos meses depois da morte de Marielle, falou ao lado de Henrique Vieira, e também de Renata Souza — negra e do complexo de favelas da Maré, uma das 30 candidatas que o PSOL apresenta nestas eleições, exemplo de como a morte de Marielle fez explodir as candidaturas de esquerda femininas e negras.

Quando Marielle foi assassinada, Freixo morava num pequeno prédio sem garagem e Antonia numa casa. Depois do crime — altamente “sofisticado”, sublinhou ele, e ainda em investigação —, decidiram mudar-se juntos para um edifício grande, de acessos mais controlados. “Nunca teve tanta gente de esquerda nesse prédio como hoje”, foi a piada de Freixo, a abrir a conversa.

E a questão do diálogo esquerda-fé foi dos pontos mais incisivos da sua intervenção. “Se a esquerda não conseguir dialogar com os evangélicos, não terá um projecto popular”, alertou Freixo. “Terá de haver um lugar de encontro. Porque as periferias são evangélicas. Não é mais o tempo da teologia da libertação [católica] do PT. A bancada evangélica vai dobrar no próximo Congresso. Vão ser 150. A esquerda poderá ser de esquerda, mas não será popular se não dialogar com os evangélicos.” Apontou então Henrique, de pé, noutra ponta da sala, brincando com a ideia de que ele é a “quota” evangélica do PSOL. Aí Henrique foi chamado a sentar-se diante da plateia, e falou depois de Freixo e de Renata, como um íman captando todo o metal em volta.

4. “Silas Malafaia é evangélico”, começou ele, referindo-se ao poderoso tele-evangelista. “Martin Luther King também era”, rematou. “Então é isso. O campo evangélico é extremamente diverso. E não é de agora. O protestantismo é diverso desde sempre até hoje. Existe um segmento fundamentalista, mais extremista, com um projecto de poder, e ele se faz maioritário pelo seu poder financeiro, pelo seu poder mediático, sobretudo televisivo, e pelo seu poder político institucional. É uma leitura literalista da Bíblia, fortemente patriarcal, de vigilância sobre os corpos, e com uma lógica de exclusivismo bélico: nós estamos certos, eles estão errados. E esse fundamentalismo evangélico namora com um proto-fascismo.”

Henrique traçou o contexto: “Hoje, 25 por cento da sociedade brasileira é evangélica. A periferia, negra, favelada, é evangélica. Os evangélicos são a religião mais negra.” Campo conquistado em boa parte a católicos. Um em cada cinco brasileiros é ex-católico. E, segundo peritos demográficos, dentro de 10 ou 15 anos a maioria do Brasil será pela primeira vez evangélica.

“Mas existe um campo evangélico progressista”, atalhou Henrique. “Eu não sou o primeiro, não sou o único, não sou o último e não sou exótico. Quem quer me tornar único? Malafaia, Macedo, Crivella, Feliciano. Esse monopólio. Mas tem uma frente evangélica contra o golpe [que derrubou Dilma]. Existem evangélicos pela legalização do aborto. A minha comunidade tem um sector feminista. Tem poder económico? Não. Tem inserção na mídia? Quase nada. Tem poder político? Não. Mas existe. Ecoteologia, teologia negra, teologia feminista, tudo isso existe.”

Muitas razões, começando pelo descaso do Estado, explicam a proliferação de pastores evangélicos Brasil fora. Entre elas, esta, apontou Vieira: “Eles são os invisíveis, aí ganham nome, estatuto, acontece um milagre. Mecanismos de empoderamento horizontal.”

Neste quadro de fortalecimento galopante evangélico, qual é o risco? “Se fabricarmos uma narrativa esquerda versus evangélicos estamos fritos. Tem de haver uma disputa de identidade e pontes para o diálogo. Em 2040 o Brasil será maioritariamente evangélico, e se criarmos essa rivalidade estaremos enterrando a democracia. O fundamentalismo não é um problema restrito dos evangélicos, cresce em todo o mundo. No mar de insegurança actual, o fundamentalismo surge como resposta. Hoje a base do MST [Movimento dos Sem Terra] é evangélica. O cárcere é evangélico.”

E “o judiciário é evangélico”, ainda acrescentou alguém à saída, na viagem de elevador em que eu estava, e o pastor Henrique também.

5. Henrique, 31 anos, casado, pai de uma filha, cresceu num “bairro popular”, de Niterói, a grande cidade do outro lado da Baía da Guanabara. A família já era evangélica, mas Henrique fundou a sua própria comunidade: Igreja Baptista do Caminho. Estudou teologia num seminário baptista e Ciências Sociais na UFF (a universidade federal fluminense). Foi vereador na câmara de Niterói de 2013 a 2016. Entretanto mudou-se para o Rio de Janeiro, bairro de Laranjeiras, um dos menos elitistas da Zona Sul. Também escritor, poeta e actor (fez de frade dominicano no filme sobre o comunista Marighella, um símbolo da luta contra a ditadura no Brasil), preferiu não ser candidato nestas eleições de 2018. “Me sinto mais potente fazendo trabalho pastoral e artístico pelo Brasil”, disse-me ontem. “Ter uma prática mais livre, mas sempre com engajamento político. Porque minha prática pastoral é essencialmente política.”

Basta abrir o seu Facebook, ou ler uma das colunas que faz para a Mídia Ninja. Aí podemos ler frases de Henrique contra “o mercado da fé”, pelo estado laico, ou sendo claro numa das matérias mais divisivas do país, e onde não se colhem votos:  “Ser a favor da vida é ser a favor do aborto legal.”

Podemos ler, enfim, da boca deste líder cristão, que Deus não é cristão: “O próprio Jesus não conheceu o cristianismo. Sua mensagem não se restringe a essa construção histórica e religiosa. Por meio de Jesus eu tenho minha experiência com Deus e ela é essencial em minha vida. Sou cristão, não por tradição, mas por experiência, decisão e paixão. Contudo não posso cair na tentação de universalizar minha experiência e acreditar que Deus só existe e se revela nela. Há algo de vento em Deus, ou seja, não sabemos de onde vem nem para onde vai. A fé deve nos despojar de toda arrogância e juízo, nos encher de compaixão e abertura. Deus é maior que tudo que sei dele. Que bom!”