Foi diretora pedagógica da Rua Sésamo, a versão portuguesa do programa infantil norte-americano Sesame Street, exibido em Portugal entre 1989 e 1996, e autora e diretora do Jardim da Celeste, um magazine educativo para crianças em idade pré-escolar.

É também a autora de uma frase publicitária que ainda hoje é famosa: "Compal é mesmo natural". Inventou-a, a par de outras campanhas, quando foi expulsa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na crise académica de 1962, e foi convidada a fazer copywriting na agência Forma.

Maria Emília Brederode Santos é atualmente presidente do Conselho Nacional de Educação, e tem um currículo extenso nesta área. É mestre em Análise Social da Educação pela Boston University e licenciada em Ciências da Educação pelo Institut de Psychologie et des Sciences de l’Éducation da Universidade de Genebra (onde também lecionou) e pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Cresceu numa família oposicionista democrática. O lado da mãe, aristocrático, não impediu o avô materno de lutar pela República (foi ministro mais de uma vez). Mais tarde ouviria falar dele como um “socialista à maneira tolstoiana”. Foi fundador da primeira companhia de seguros portuguesa, que apareceu como forma de proteção social dos mais vulneráveis, e uma parte dos lucros era dividida com os trabalhadores.

A mãe era uma mulher culta, moderna, das primeiras a ter carta de condução. Frequentou o ensino superior, mas acabou por desistir por ocasião da morte de um irmão. 

O pai era de uma família republicana da Madeira. Nasceu em África, onde o avô, médico militar, estava colocado. Fez a sua opção política muito cedo, e, em Coimbra, de onde teve de fugir depois do período das greves, era conhecido como o “caloiro dos discursos”. Licenciado em Direito, o seu primeiro grande trabalho foi defender um dos autores do atentado contra Salazar.

Muitas das opções de Maria Emília, nomeadamente na educação, foram marcadas pela orientação política da família. Tinha três anos quando entrou para o Colégio Inglês, já sabia ler — achavam-na um génio porque acreditavam que tinha aprendido sozinha, mas atribui aí um papel importante à avó paterna, professora primária, que acreditava imenso na educação. Maria Emília também acredita que "é aqui que se joga tudo" —, e no quinto ano foi para o Liceu Francês Charles Lepierre, acabado de inaugurar.

Embora a consciencialização social costume chegar antes da consciencialização política, no seu caso foi o contrário. Sempre se sentiu parte de uma corrente minoritária: não era batizada e era contra Salazar, numa altura em que a maioria daqueles no meio em que se movia eram pró-regime.

Casou com José Medeiros Ferreira, político e ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro Governo Constitucional de Portugal, em 1976, e isso também marcou a sua vida. Em 1969, iria com ele para o exílio, em Genebra, na Suíça, de onde regressariam logo depois do 25 de Abril.

Muito antes disso, marcaram-na diversas viagens ao estrangeiro, sobretudo aos Estados Unidos da América, tinha 16 anos, onde conheceu John F. Kennedy, pouco antes de este se tornar o 35.º presidente dos EUA.

Nunca foi do Partido Comunista ou da extrema-esquerda, sempre foi pacífica e moderada. Gosta de questionar tudo e podia passar horas a discutir um assunto. Foi mais ou menos isso que fez ao longo de uma conversa de três horas muito centrada na Educação.

"Vivemos um período muito assim, em que há posições muito extremadas, pouco racionais"

Hoje [28 de julho] é o funeral de Otelo Saraiva de Carvalho, se calhar começo por aqui...

Vou lá passar agora.

Conhecia-o?

Conheci, mas não conheci bem. Ele era uma pessoa muito afetuosa, era fácil ter contacto com ele, sim. 

As pessoas extremam muito as posições em relação a Otelo. Aliás, em relação à política no geral e a alguns assuntos em particular. É uma característica portuguesa?

Otelo também era muito extremado, portanto também convidava a isso. Eu sou pouco, por isso, tenho uma visão dele como ser humano muito interessante, tenho apreço pelo que fez no 25 de Abril e por ele como pessoa. Mas confesso que não gostava de o ver em presidente da República, teria algum receio.

Muitos teriam, a avaliar pelo resultado das duas eleições presidenciais a que se candidatou.

Mas ainda teve uma percentagem elevada, mais do que o PC, por exemplo.

Sim, mais de 14% da primeira vez, em 76, e menos de 1,5% da segunda, em 80. Sobre a polarização das opiniões, é cultural?

Vivemos um período muito assim, em que há posições muito extremadas, pouco racionais. Todos temos coisas boas e más, não vale a pena ter essas opiniões muito radicais. Mas isto não é só cá, é no resto do mundo.

Sei que não estava cá no 25 de Abril...

Não, estava em Genebra. 

Como soube o que se estava a passar?

Acho que soube por duas vias. Uma foi logo de madrugada, por um suíço — eles acordam muito cedo — amigo do José [Medeiros Ferreira]. A outra foi o Joaquim Pinto de Andrade, que tinha sido padre, irmão do Mário Pinto de Andrade [fundador e primeiro presidente do MPLA], que tinha estado preso com o José e com o Nikias Skapinakis [pintor português de ascendência grega] no Aljube e tinham-se tornado muito amigos. E ele telefonou de cá para o José, numa grande excitação, a dizer que tinha havido o 25 de Abril. Depois passámos o resto do dia ao telefone para cá e para lá.

Souberam logo que era uma coisa boa ou ainda temeram o pior?

O José tinha previsto, até, que iam ser as Forças Armadas a derrubar o regime, portanto, para ele não foi uma coisa surpreendente. Mas não tivemos logo a certeza de que fosse bom. E podia não ter sido, podia ter sido bom e depois ter descambado. O José, depois, veio para o 1.º de Maio, mas eu fiquei lá, porque tinha tido o meu filho, já tinha estado de licença de parto, não podia sair. Vim no verão e ele ficou lá a fazer as arrumações. E também passaram lá muitos amigos, houve muitos contactos, muita comunicação, e nessa altura percebemos que estava tudo bem.

"O meu pai achava que Direito não era um curso para meninas e, portanto, fui para Direito"

Como conheceu o seu marido?

Conheci-o na crise de 62. Eu ainda não estava em Letras, estava em Direito, e ele era dirigente associativo — era o vice-presidente, mas era quem ia às reuniões e foi ele que tomou a responsabilidade pela crise em Letras. Mas não começámos a namorar logo, só mais tarde.

Sobre esse primeiro ano em Direito, porquê a escolha, por causa do seu pai?

Ao contrário, o meu pai achava que Direito não era um curso para meninas e, portanto, fui para Direito [ri]. Mas depois não gostei nada. Ou, por outra, é um pouco ambivalente. Por um lado, era o tipo de raciocínio para o qual sou atraída, mas depois era muito formalista, muito hierarquizado. Por outro lado, não gostei do ambiente, éramos 14 raparigas e o resto tudo rapazes, os professores eram todos ex-ministros ou futuros ministros de Salazar, entravam por uma porta diferente... A associação de estudantes era fantástica, chamavam-lhe os subterrâneos da liberdade, em homenagem a Jorge Amado. Também havia um ambiente solene, mas toda a gente discutia tudo e isso é que era fantástico. Apanhei o Pedro Ramos de Almeida, por exemplo, que tinha saído da cadeia — tinha o cabelo todo branco e eu achava que era por ter estado preso, a minha mãe dizia-me que não, era de família —, e era muito considerado academicamente; Marcello dava-lhe muito boas notas e dizia que preferia um comunista inteligente a não sei quantos burros. E ele passava o tempo lá em baixo a discutir, era muito interessante.

De que é que falavam?

Política. Ali em baixo, claro. Nos subterrâneos falava-se de política, sempre. Porque não se podia falar cá fora e porque o movimento associativo estava muito politizado, apesar de dizermos que éramos apolíticos e arreligiosos e atudo.

créditos: Diogo Gomes / MadreMedia

O seu pai era social-democrata.

Sempre se definiu como social-democrata e lembro-me inclusivamente de que um partido liberal inglês se ofereceu para apoiar a ação democrata social e o meu pai foi contra, disse que não era liberal, era um social-democrata, não queria confusões. E tem artigos publicados desde muito novo a defender isso, o cooperativismo...

Como olharia ele para a social-democracia de hoje, para o PSD?

Pois... Acho que ainda há no PSD pessoas com quem ele se poderia entender, certamente, e que poderia apreciar. Mas há linhas e alianças que lhe fariam muita impressão.

Sempre se situou mais à esquerda, como os seus irmãos. Era só para contrariar, como o Direito?

Não. Embora eu descubra mais afinidades com a social-democracia do que pensava há uns anos. Acho que temperamentalmente sou uma moderada, gosto de ver os vários lados das questões. Não é que tenha alguma atração pelo PSD, mas acho que percebo e, sobretudo, que aprecio melhor o meu pai e as posições dele, que não eram impositivas, não procurava convencer os outros, mas eram para ele inabaláveis. Claro, em miúda eu era mais radical.

E o PS de então era muito diferente do PS de hoje?

Todos os partidos estão a conhecer uma nova geração, que não teve a experiência de resistência anterior, que não conheceu o ambiente que se vivia antes do 25 de Abril e em que, obviamente, é mais fácil a minha geração reconhecer-se.

"O Partido Socialista tem a virtude de querer mudar as coisas e ser mais justo e mais equitativo sem, ao mesmo tempo, cair no corte das liberdades"

Para as gerações mais novas não há esse ponto de comparação, quem nasceu depois de 75 já nasceu em democracia. Isto faz com que haja uma certa mornice na sociedade?

A democracia é um bocadinho isso, não é? É um bocadinho adormecente, de certa maneira. Para o bem e para o mal. Por mim, acho que vale a pena, mas reconheço que, para mudar, para resolver os problemas, leva mais tempo. Mas esta geração teve agora a Covid, que também é um abanão, vai ficar na vida deles, é um marco.

Quando ouve as pessoas queixarem-se da democracia ou vê o índice em Portugal baixar de democracia plena para democracia com falhas, em que pensa?

Sabem lá vocês o que é uma democracia com falhas [ri]. É mais ou menos isto. Fico sempre um bocadinho alerta, apesar de tudo: onde é que isto está a quebrar?

E está a quebrar, consegue perceber onde?

A situação está preocupante em todo o mundo e cá também teremos pontos fracos e gente sem escrúpulos para os explorar em vez de os procurar corrigir e melhorar. Por exemplo, há agora uma questão que me anda a preocupar, que é a das redes, da utilização das redes para o discurso de ódio, para promover o pior que há nas pessoas. Não sei se esta lei que está em discussão [Carta dos Direitos Humanos na Era Digital] é boa ou má, mas sei que é preciso uma regulamentação qualquer e que não pode ser só a nível nacional. "Ah, porque a democracia é liberdade de expressão..." Não é verdade. Temos os jornais, sabemos quem são os seus diretores, os artigos são assinados, essas pessoas tomam responsabilidade por isso. É preciso que haja uma regulamentação das redes digitais como existe para os órgãos de comunicação social e essa regulamentação tem de ultrapassar o nível nacional, e isso não me parece que seja um atentado à liberdade. É um condicionamento, mas há sempre limites.

Depois de um ano em Direito mudou para Letras. Porquê?

Fui para Direito e, uma coisa que não disse há pouco, é quando estamos na faculdade que começamos a pensar nas profissões. E naquela altura as mulheres não podiam ser juízes, não podiam ser do corpo diplomático, não podiam ser uma quantidade de coisas que o curso de Direito permitiria aos homens. A única coisa que podia ser, além de conservadora e notária, que odiava, era advogada, mas também era tímida para isso. Então, estava com a mania de que ia ser diretora de uma casa de delinquentes, aquelas casas de correção. Mas depois disseram-me que havia duas, ou algo parecido, e que aquilo não fazia sentido nenhum. E comecei a ver uma amiga, cuja prima andava em Letras e que se passeava com Goethe, lia "Fausto", e eu pensava: "Que inveja". E pronto, fui para Letras.

Entrou exatamente na crise académica de 1962, o primeiro grande conflito entre os estudantes universitários e o regime do Estado Novo.

É verdade, quase não fui às aulas. E acho que aprendi imenso, não aprendi as matérias, os livros, mas aprendi noutras áreas, foi uma coisa extraordinária. Desde aprendizagens formais, de como se organiza um comício, uma assembleia geral, que é uma aprendizagem democrática, ao equilíbrio que é preciso ter entre o desafiar e o avançar e recuar, mantendo as formas, ao colaborar, escrever, falar em público. O Técnico [IST], por exemplo, tinha uma associação de estudantes ótima a organizar viagens e o Sérgio Palma Brito acabou por ir para o Turismo [foi Diretor-Geral da Confederação de Turismo]. Era, de facto, um meio muito rico em que se aprendia muito em várias dimensões. Mas a crise propriamente dita ensinou-me como se faz um combate político. Já nessa altura me faziam impressão as posições muito extremadas, os que queriam só contestação ou os conservadores, que não alinhavam. O equilíbrio entre as duas coisas, ser resistente e inteligente, foram coisas que se aprenderam na crise de 62 e não se podiam aprender nas aulas. Mas depois tive muitos professores interessantes, os professores eram muito mais interessantes do que em Direito. E andavam no autocarro connosco, iam ao bar connosco, era um ambiente muito mais simpático.

"Um estudo sobre explicações mostra que, no 1.º ciclo, 20% dos meninos têm explicações; no 2.º ciclo, 30%; no 3.º ciclo, 40%; e, no secundário, 60%. Isto é uma escola sombra"

Hoje fala-se nas aprendizagens que se perderam por causa da pandemia e na recuperação que é necessário fazer. 

Claro que há aprendizagens importantíssimas que se perderam, sobretudo no 1.º ciclo, onde é preciso fazer um esforço muito específico, muito orientado. Mas há outras aprendizagens, os miúdos aprenderam outras coisas, as experiências de vida também são muito importantes. Penso que no ensino é possível haver definições gerais, que tenham em conta a idade dos alunos, mas o ensino tem de ser muito mais alargado. Nos últimos anos, houve uma tendência para concentrar tudo na Matemática e na língua materna e desvalorizar outras disciplinas. Os alunos portugueses são os que fazem menos exercício. Há uma grande preocupação securitária e também uma grande preocupação de tornar académica a Educação Física — quando me falam em testes de papel e lápis na disciplina, fico doente. A pandemia afetou o ensino na medida em que encerrou as escolas, mas, apesar de tudo, foi extraordinária a maneira como todos se conseguiram adaptar à situação. Tiro o chapéu ao Ministério da Educação, que pode ter falhado a seguir, aos pais, aos miúdos e aos professores — gosto imenso da imagem daquela professora da Maia, no carro, a subir a colina de computador na bagageira para conseguir apanhar Internet. A pandemia tornou muito mais visíveis as desigualdades que já existiam, passávamos por cima delas sem lhes ligar. Eu tinha aqui, na altura, uma secretária, uma mulher fantástica, que tinha sido auxiliar numa escola, teve seis filhos, fez o curso de Direito todo, e que foi para casa em teletrabalho. Era impossível, não havia computadores que chegassem, nem rede, nem casa.

Vale a pena estar a tirar períodos e férias para compensar o ano? Qual a solução para recuperar o que se perdeu?

Não sei se valerá a pena, está toda a gente muito exausta. Há duas coisas que valia a pena: uma é ter um segundo professor na aula para trabalhar pequenos grupos ou individualmente sem sobrecarregar a aula nem os miúdos, que também estão cansados. Um estudo sobre explicações encomendado pela CONFAP [Confederação Nacional das Associações de Pais] à Universidade Católica mostra que, no 1.º ciclo, 20% dos meninos têm explicações; no 2.º ciclo, 30%; no 3.º ciclo, 40%; e, no secundário, 60%. Isto é uma escola sombra. Se houver explicações na escola, digamos assim — embora tenha medo de que, sendo obrigatório, os miúdos se sintam castigados, e, sendo voluntário, só vão os que não precisam. Mas os professores em concreto podem ver com cada miúdo, acho que, se forem todos envolvidos, alinham muito mais.

Já respondeu parcialmente, mas como vê o papel do Partido Socialista e do governo na Educação? 

O Partido Socialista tem a virtude de querer mudar as coisas e ser mais justo e mais equitativo sem, ao mesmo tempo, cair no corte das liberdades. A partir dos anos 60, toda a gente percebeu que não bastava tornar a escolaridade obrigatória, que os resultados da Educação estavam muito condicionados pelas condições de partida [socioeconómicas]. Por isso, tem de haver um esforço, que é quase decisivo, para, mesmo apesar dessas condições sociais, a Educação ser mais justa. Acho que o Partido Socialista tem essa preocupação e isso parece-me uma coisa positiva. Além disso, acho que mesmo a nível social tenta mais do que outros que haja uma menor desigualdade do que aquela que existe.

É uma defensora da Educação pública. Pode nomear três ou quatro vantagens da educação pública sobre a privada?

Sou uma defensora da Educação. Considero que a escola pública tem dois grandes méritos, ambos decorrentes de acolherem todas as crianças. Ou seja, a escola pública reconhece — tem de reconhecer — o direito à educação de todos. A segunda característica muito positiva é proporcionar a todos uma grande heterogeneidade. Deve haver poucos contextos onde possa haver uma variedade social tão grande, o que constitui uma aprendizagem de grande riqueza e promove a coesão social do país. Enquanto nos Estados Unidos essa função da escola de melting pot é bastante valorizada, em Portugal esse argumento é pouco utilizado em favor da escola pública, quando para mim devia ser o principal. Dito isto, considero que há escolas privadas que podem ser muito interessantes, sobretudo se forem inovadoras, se a motivação para a sua existência for procurar vias diferentes e não fazer como há 100 anos.

"A escola não pode ser só para aprender matérias teóricas, tem de ser para aprender a fazer coisas práticas"

E, quanto aos professores, a formação é igual?

Penso que é a mesma coisa, são formados nas mesmas escolas, exceto os internacionais. No Liceu Francês, eu estava na parte portuguesa e aí a grande qualidade dos professores não era por serem internacionais, era por não poderem lecionar no ensino público, eram professores politizados e com uma grande consciência cívica. Tive professores muito bons. Claro que as escolas privadas podem recusar um professor e nas públicas não é assim, mas a diferença é que para as escolas públicas toda a gente pode ir, não se pode excluir um menino só porque não é bom aluno.

créditos: Diogo Gomes / MadreMedia

Qual é para si o principal problema da educação?

Acho, mas vou dizer uma coisa politicamente pouco correta, que aprender é um grande prazer e que vamos ter de aprender toda a vida. E isso não é valorizado na escola, pelo menos não é valorizado suficientemente. A escola só valoriza a aprendizagem muito académica, quando uma característica importante devia ser promover o gosto de aprender e o aprender devia ser muito mais abrangente. A escola não pode ser só para aprender matérias teóricas, tem de ser para aprender a fazer coisas práticas. Eu não sei fazer nada com as mãos, mas acho isso uma limitação horrível. E é absurdo. Penso que era Roberto Carneiro que dizia que, quando se aprende o sistema circulatório, se devia aprender também a estancar uma hemorragia. E posso dizer o mesmo do sistema respiratório e de aprender a nadar ou a fazer manobras de reanimação. O ensino tem de estar muito mais inter-relacionado. As vias de ensino profissional conseguem mais isso do que as vias científico-humanísticas, mas isso devia ser uma característica ao longo de toda a escolaridade.

"Se os professores tiverem um papel mais ativo, não forem meros executantes, talvez também haja muito mais professores interessantes"

Então, por que motivo não é assim, porque é que o lado prático está cada vez menos presente?

Estamos a fazer uma transição de uma escola muito centrada nos programas e nos conteúdos e nos cânones para uma escola mais centrada nos alunos e no que eles vão aprender e aprendem de facto. Mas, cada vez que se mexe nos programas, aqui-d'el-rei que estão a tirar "Os Maias" ou aqui-d'el-rei que estão a fazer outra coisa qualquer. É uma transição difícil. Mas, de facto, se se estabelecer, como já se estabeleceu, qual se quer que seja o perfil de aluno à saída da escolaridade obrigatória, que competências é indispensável que tenha desenvolvido, então os professores ficam com muita margem de liberdade para adequarem os programas ao seus interesses — deles professores, que também é importante, e dos alunos. Mas isso tem provocado muitas reações negativas por causa das chamadas aprendizagens essenciais, críticas de que isto é nivelar por baixo. Não é nivelar por baixo, é considerar que os professores são pessoas capazes de construir o currículo com os alunos e de gerir isso.

É difícil colocar os filhos nas mãos de professores, sobretudo quando não os conhecemos? Pode correr bem, mas também pode correr muito mal.

Sim. Mas se calhar valia ter mais confiança nos professores. Se os professores tiverem um papel mais criativo e mais ativo, não forem considerados meros executantes — está aqui o programa, estão aqui os meninos, vamos lá levá-los a exame —, talvez também haja muito mais professores interessantes. 

Hoje fala-se muito na escola inclusiva, como se isso se fizesse por decreto. As escolas públicas, mesmo sendo obrigadas a admitir alunos com necessidades especiais, não estão objetivamente preparadas para os receber. Estão preparadas para uma média, nem acima nem abaixo disso.

Não sei se partilho dessa opinião. Costuma dizer-se que a escola tradicional (pública ou privada) está organizada para um aluno médio que não existe. Atualmente, procura-se uma "educação mais à medida", que se adapte mais a cada um — aos seus interesses, ao seu ritmo —, mas também considerando que há um certo número de aprendizagens que todos terão de fazer. Depois há as escolas de referência — percebo não é possível todas as escolas terem equipamento Braille, por exemplo, ou intérpretes gestuais e por aí fora. Pode ser mais chato, por não estar mesmo ao lado de casa, mas, apesar de tudo, não deixam de existir.

Qual o seu ideal de escola?

Assim como não há sociedades perfeitas, sei que não há escolas perfeitas. Mas gostava que nos aproximássemos de uma escola onde todos — professores e alunos — tivessem a possibilidade de fazer ouvir a sua voz, de contribuir para o comum e também de prosseguir os seus interesses.

Qual a relação do Conselho Nacional de Educação com o governo?

O Conselho é um órgão consultivo da Assembleia da República e do governo, sobretudo dos dois ministérios, da Educação e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Mas é independente e também pode tomar iniciativas. 

Que trabalho desenvolve e que recomendações ou iniciativas tem tomado?

Tanto a Assembleia da República como o governo, mas em especial os dois ministérios, podem pedir pareceres sobre problemas ou medidas legislativas que estejam a pensar em adotar ou que já existam. Somos poucos, umas dez pessoas, mas o Conselho tem 68 conselheiros, que vêm cá apenas nos plenários, e que são quem faz as recomendações e os pareceres. Por exemplo, o Ministério do Ensino Superior pediu-nos várias vezes pareceres sobre medidas que ia tomar, como o acesso dos alunos das vias profissionais. Ultimamente não tem pedido, mas pediu sobre o perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória. E temos tomado iniciativas e feito recomendações.

"Demos um salto enorme na Educação desde o 25 de Abril, temos de ter essa consciência"

Por exemplo?

O acesso ao ensino superior, que é uma das mais polémicas. A recomendação é que o ensino secundário fosse terminal e o acesso ao ensino superior fosse da responsabilidade das instituições de ensino superior. Isso libertava os professores do ensino secundário, que estão reféns daquilo que vem nos exames. Por outro lado, também se sabe que nem sempre os alunos que têm as melhores notas são os mais adequados aos cursos a que concorrem. Uma separação entre as duas coisas permitiria ao secundário estar mais livre para fazer como entendesse e às instituições de ensino superior poderem escolher pessoas com um perfil mais adequado ao curso. Mas os do ensino superior não querem.

Os números clausus fazem sentido ou há muito deviam ter desaparecido?

Cada vez vão fazendo menos. Mas só agora temos a escolaridade obrigatória de 12 anos, foi um salto muito grande. Demos um salto enorme na Educação desde o 25 de Abril, temos de ter essa consciência. Tínhamos seis anos de escolaridade obrigatória, mal cumpridos, com três vias diferentes, muito desigual, agora temos 12 anos e mais o pré-escolar, que praticamente não existia. Tínhamos taxas de analfabetismo bastante grandes, hoje estão muito mais reduzidas. Sabe, tive cá a visita de uma investigadora japonesa que veio para perceber como é que Portugal conseguiu reduzir tão rapidamente o abandono escolar. 

"Uma sociedade com cidadãos mais educados é uma sociedade mais desenvolvida, mais rica, com capacidade para ir mais longe"

E qual é a explicação?

Há muitos fatores, um deles é o pré-escolar, parece-nos. Outro é a redução do insucesso escolar — o chumbo é o primeiro convite para os alunos deixarem a escola. Depois, o prolongamento da escolaridade obrigatória e a criação das vias de dupla certificação também são fatores que contribuíram para a redução da taxa de abandono escolar.

Percebo que é contra os chumbos. Para muitos, não chumbar um aluno é nivelar o ensino por baixo. Concorda?

Não. Essa é uma conceção de escola completamente diferente. Antigamente a escola era para selecionar uns tantos que iriam para certas profissões. Hoje não. Toda a sociedade tem de ter uma escolaridade básica, neste caso de 12 anos, que já é imenso, seja por princípios democráticos, porque é um direito dos cidadãos, seja do ponto de vista do desenvolvimento da sociedade; uma sociedade com cidadãos mais educados é uma sociedade mais desenvolvida, mais rica, com capacidade para ir mais longe. É uma mudança de paradigma. Mas as pessoas estão muito centradas naquela escola que conheceram e que era muito seletiva, sob vários pontos de vista, muito hierarquizada, em que a preocupação era ver o que os alunos não sabem. Se for a um país do norte da Europa, por exemplo, os professores querem é ver o que os alunos sabem. Esta é a principal razão para eu achar que os chumbos já não fazem sentido. Se for ver os estudos, verifica-se que os chumbos são negativos, não ajudam em nada. Repetir um ano deixa a pessoa com cada vez menos confiança em si própria e na sua capacidade, só inferioriza, não faz nada de novo.

créditos: Diogo Gomes / MadreMedia

Qual é para si a fase mais importante da educação, aquela a que se devia prestar mais atenção e ter mais cuidados?

O mais importante é o princípio, mas onde há mais problemas é à medida que se avança. Vemos isso quando perguntamos aos miúdos se gostam ou não da escola e do que gostam. Ao princípio estão muito contentes, gostam de aprender, mas à medida que crescem vão deixando de gostar, vai-se tornando cada vez mais pesado, mais pressionante. Há um estudo da Organização Mundial de Saúde, que em Portugal foi coordenado por Margarida Gaspar de Matos, que vai muito nesse sentido. Os alunos dizem sentir-se muito pressionados — pelos pais, pelos professores, pelos exames — para terem boas notas e queixam-se de terem de estar sempre a estudar e a ser avaliados. Ora, se cada um de nós tentar recordar-se das aprendizagens importantes que fez, constatará que muitas vezes foram aprendizagens livres, em que se procuraram diferentes soluções, sem a preocupação de estar a fazer certo ou errado, mas sim de explorar várias hipóteses. Mas é difícil, com a estrutura da escola que temos e com a ideia dos programas muito inflexíveis, dar esse salto.

Sobre o caso dos miúdos que não frequentaram a disciplina de Cidadania por discordância dos pais e que podem, por isso, e apesar de serem belíssimos alunos, chumbar o ano. Como olha para este tema?

Sou uma defensora da educação para a cidadania, fiz parte de uma equipa que elaborou uma proposta de programa a pedido da então ministra da Educação, Isabel Alçada, e defendo imenso que uma das principais missões da escola é formar cidadãos. O que não quer dizer que só haja uma maneira de o fazer. Na minha proposta, havia uma grande ênfase no facto de haver três dimensões na educação para a cidadania: a vivência — a forma como se vive a escola tem de ser democrática, não pode haver ninguém discriminado —, a participação — tem de haver formas de os alunos poderem participar em coisas importantes, na própria aula, na gestão da matéria, na forma como se vão organizar —, e o debate — questionar e debater. 

Há pouco ia perguntar-lhe por que motivo foi para o exílio, mas a conversa tomou outro rumo. Gostava de saber...

O José tinha estado na crise de 62, depois foi eleito secretário-geral da RIA [Reunião Inter–Associações] e, logo em outubro, foi preso e esteve no Aljube. Depois foi candidato a deputado nas eleições de 1965 [7 de novembro] pela oposição e foi expulso de todas as universidades do país, porque em 1962 só nos expulsaram das de Lisboa, mas depois perceberam que alguns iam de Lisboa para Coimbra e não era uma ideia muito inteligente. Depois ficou à espera de ser incorporado. O José estava a fazer o serviço militar e foi-lhe colocado um processo disciplinar, alguém lhe mostrou instrumentos de tortura que, ao abrigo de Convenção de Genebra, nunca usaria. Decide ir-se embora e escrever uma carta aberta às Forças Armadas a dizer que estaria pronto a regressar quando estivesse ao serviço do povo português. Essa opção, para ele, foi um dilema muito, muito duro. Eu disse-lhe que ia com ele para onde ele fosse, mas para mim era óbvio que devia ir para fora, não era para a guerra. Porque achava que era uma guerra injusta e completamente sem sentido. Mas é claro que é fácil dizer, porque eu não tinha de fazer a opção. Além de que o José tinha dois irmãos militares. E sabia lá quando iria voltar. Mas, por exemplo, o meu irmão Fernando foi preso, entre outras coisas porque ajudava desertores, e o meu irmão Nuno foi para África. Sabíamos que não havia uma solução única e boa, ou a melhor de todas, era um problema real com o qual toda a gente tinha de se confrontar. O Fernando [ri]...

Porque ri?

Porque ele era uma personagem tão engraçada... Era um adolescente eterno, viveu a vida como quis. Nós tínhamos granadas debaixo da cama sem saber.

"A ideia que às vezes me era passada de que, não sendo batizada, os meus pais iam para o inferno, ou algo do género, indignava-me muito"

Não é católica...

Não, e não sou batizada.

Isso, para a época, devia ser estranho, mesmo na relação com as outras crianças.

Sempre me senti diferente por causa disso. No princípio do ano perguntavam sempre: "Quem é que aqui não é batizado?". E lá levantava eu o braço (mais uma, eventualmente). É engraçado, porque no Colégio Inglês a diretora, que era muito católica e muito salazarista, havia, além de Religião e Moral, uma aula para os que não eram católicos: judeus, protestantes, ateus. E dávamos o Antigo Testamento. E com a professora de Religião e Moral da Mocidade Portuguesa até me dei muito bem, porque eu era sempre uma alma a conquistar [gargalhada]. As minorias têm sempre uma preocupação ética maior, e sei que o meu pai tinha. A ideia que às vezes me era passada de que, não sendo batizada, os meus pais iam para o inferno, ou algo do género, indignava-me muito, porque sabia que eram pessoas muito, muito boas, e achava que, só por isso, a religião não podia estar certa.

O que quer dizer com as minorias têm sempre uma preocupação ética maior?

É tudo muito mais pensado. Quando se está com a maioria, o mais provável é que não se faça propriamente uma opção. Fazer uma opção diferente obriga a pensar.

Como foi a sua infância?

Eu acho que a minha infância foi fantástica, até tenho vergonha de dizer isto. Era uma menina no meio de dois rapazes, os amigos dos meus pais tinham todos rapazes, só havia uma menina, muito mais pequenina. Portanto, tive uma vida muito de maria-rapaz, por um lado, mas muito protegida, porque era uma menina, não me podiam fazer mal. Tinha o lado bom de tudo.

Quando saiu de Portugal pela primeira vez, quando teve a primeira noção de mundo?

Mais a sério foi aos 16 anos, quando fui um ano para os Estados Unidos, naquele programa de intercâmbio de alunos, o American Field Service, que tinha poucos anos em Portugal e que, pela primeira vez, abriu para raparigas. Fiquei em casa de uma família muito católica, no sul da Califórnia, e senti-me uma fraude. Pensei: "Puseram-me aqui porque pensam que sou católica". Andei com aquele problema na cabeça, porque os católicos nos Estados Unidos também são uma minoria, também viviam muito naquele ambiente. E lá me enchi de coragem para dizer à dona da casa que não era católica. Julguei que me iam mandar embora, mas a senhora foi super simpática, disse que não tinha importância nenhuma, que o importante era o que está dentro da pessoa, que também não era católica, era nazarena — cá aquilo seria uma seita. Gostei imenso, porque eram assim uns cristãos primitivos — acho que os republicanos, como chamo à linha do meu pai e da minha mãe, eram um bocadinho eticamente cristãos primitivos. Depois fui falar com um padre, porque queria imenso participar nas coisas, mas achava que não podia por não ser batizada. E ele disse: "Não é batizada?! Mas porque é que não é batizada?". "Porque os meus pais acham que só quando tiver 18 anos é que devo escolher...". "Vai já ser batizada, não dizemos nada a ninguém", diz ele. Fugi logo dali a sete pés.

Questionava os seus pais sobre isso, contava-lhes o que sentia?

Sim, sobretudo na adolescência, quando queria muito fazer como as minhas amigas. Era uma altura em que na Quinta-feira Santa se fazia uma peregrinação por não sei quantas igrejas, depois as pessoas iam comungar e vinham com um ar muito iluminado, e eu queria imenso ter aquele ar [ri]. O meu pai achava que quando eu tivesse 18 anos decidiria, porque era uma opção muito importante na vida e antes disso não teria discernimento.

créditos: Diogo Gomes / MadreMedia

Quando foi para os Estados Unidos que diferenças sentiu em relação a Portugal?

Havia imensas diferenças, para o bem e para o mal. Ou, antes, acho que sempre para o bem. Levava presentes, um deles era uma capa de um livro em cabedal (achava que era um presente muito bom). Cheguei lá e não havia nenhum livro para pôr na capa e eu pensei: não vou poder viver aqui — estava habituada a ter uma casa com livros em toda a parte, bibliotecas de todas as gerações. Mas depois gostei imenso. Por exemplo, as pessoas deixavam os manuais na escola, mas eu estava habituada e trazia-os para casa. E o dono da casa, que nunca tinha oportunidade, lia os manuais e discutia-os comigo. Viu-o pouco antes de morrer, com mais de 90 anos, e ele ainda falava nas nossas discussões, à noite. Esse aspeto, que foi uma coisa que me chocou à entrada, desfez-se. O da religião também. E uma coisa de que gostei muito é que eram muito mais cidadãos, as diferenças sociais, naquela altura, e ali na Califórnia — uma região nova, com pessoas que chegavam de muitos lados —, eram muito esbatidas: a bibliotecária era sobrinha da senhora que fazia as limpezas, a senhora que fazia as limpezas era tratada com toda a consideração, a refugiada húngara era casada com o físico atómico e toda a gente ia junta para o piquenique, jogavam juntos e divertiam-se. Em Portugal, sempre fomos muito classistas, ainda somos. Lá, cada pessoa era um cidadão. Aqui, lembro-me de um amigo inglês ter vindo a minha casa, que tinha elevador. Um dia colocaram um papel a dizer: "Pessoal de serviço é favor utilizar as escadas de serviço". Quer dizer, o pessoal de serviço é que vinha carregado... Comentei com ele que aquilo era incrível, mas não fiz nada. Ele agarrou, arrancou o papel e pronto.

"Quando disse que era portuguesa, o Kennedy perguntou-me: 'Como está o meu amigo Salazar?'"

Foi nessa viagem aos EUA que conheceu Kennedy?

Foi. Estávamos já em 1959, quase no fim da estadia, e as organizações locais faziam muito sessões de recolha de fundos com os estudantes. Numa das últimas estava um senhor que perguntou o que é que não tínhamos feito que gostássemos de ter feito. "Gostava de ter ido a São Francisco, nunca fui, e gostava muito de ter conhecido gente do Partido Democrático, porque a minha família é toda republicana, os professores que conheço parecem-me republicanos, e acho que me sinto mais próxima dos democratas". Estava na sala um senhor do Partido Democrático, um chefe qualquer, e foi falar comigo e com a família com quem eu estava, a dizer que ia haver uma sessão com o possível futuro candidato do Partido Democrático à presidência e que se calhar eu acharia graça ir. Foi-me buscar e lá fomos ao comício, uma espécie de jantar, com o Kennedy. E ele apresentou-mo.

Sobre o que falaram?

Quando disse que era portuguesa, o Kennedy perguntou-me: "Como está o meu amigo Salazar?". E eu respondi: "Oh, não devia ser seu amigo, olhe que...". E ele: "Eu sei, eu sei". Lembro-me de que achei o máximo, ele era muito cativante e terminou o discurso com um poema de Robert Frost, o que era pouco habitual. Achei graça que em Portugal, depois do 25 de Abril, Eanes também usava muito o Miguel Torga e outros. Mas, voltando a Kennedy, foi nessa volta que foi eleito candidato do Partido Democrático e acabaria por ser eleito presidente dos Estados Unidos da América.

"Não suporto essa má-língua destrutiva que quer esmagar os outros"

Do que gosta, o que não tolera e o que não dispensa?

Gosto imenso do mar, do sol, da praia. Mas não é isso que quer, pois não?

É, se isso é importante para si.

Gosto imenso de ler, de conversar, de discutir — discutir, não agredir, falar assim, colocar várias hipóteses. Gosto muito de estar com os meus netos, de estar com o meu filho. Não dispenso livros, papel... E o café. Os cafés são um marco civilizacional, pelo menos para a minha cabeça. Não tolero pessoas invejosas, pessoas que vão buscar o pior dos outros — ando muito obcecada com as história das redes sociais. Há uma história de António Botto que, afinal, ele foi buscar a Platão, mas a que acho muita graça, "As três peneiras". Um miúdo chega a casa e diz: "Ó mãe, sabes o que dizem do António?". E a mãe responde: "Espera. O que vais dizer, sabes se é verdade?". "Não, não sei, foi o que me disseram". "E é bom?". "Não, não é lá muito bom". "E é útil, serve para alguma coisa?". "Não, acho que não". "Então, está calado". Não suporto essa má-língua destrutiva que quer esmagar os outros.

Ainda está no conselho de opinião da RTP?

Já não estou, felizmente.

Porquê felizmente?

Não devia ter dito isto. Vou explicar: percebo que quantificar seja importante, Ursula von Mayer dizia que é preciso ter objetivos mensuráveis porque o que é mensurável é fazível. Mas nem tudo se pode medir, nem tudo vale a pena medir e, quando tudo é para medir, perde-se uma grande riqueza. Na programação das televisões as coisas estão de tal maneira quantificáveis que se perde o objetivo; o que queremos é programas bons, de qualidade.

Antes de terminar, uma pergunta sobre um dos seus primeiros trabalhos, numa agência de publicidade. Como é que aconteceu?

Foi na Forma. Acho que foi quando fui expulsa, em 1964/65, nem foi por muito tempo, mas foi mesmo na fase da inscrição, portanto, perdi o ano. Estava sem nada para fazer e um amigo, que era chefe de publicidade — numa altura em que a publicidade começou a aparecer, havia muitas agências a constituírem-se —, andava à procura de criativos e então achava que os estudantes do movimento associativo eram criativos. E convidou-me para copywriter. A mim se deve o slogan "Compal é mesmo natural". Já viu se eu tivesse pedido direitos de autor? Estava rica [ri]. O que percebi nessa altura foi uma coisa que depois também percebi na televisão: um profissional pode fazer um trabalho tão bom para a Compal como para outra marca qualquer, mas depende da força e do dinheiro que está por trás. Na televisão fui diretora pedagógica da Rua Sésamo, que todos conheciam, mas depois fui autora e diretora de um programa chamado Jardim da Celeste, muito menos conhecido, mas que era muito bom também. Fiz outras campanhas de publicidade boas, mas não tiveram a mesma projeção. Lembro-me de que quando estava a fazer a tese da faculdade, sobre o mito do cowboy na cultura americana, inventei um slogan para uma marca de camisas que era: "Procura-se! Homem capaz de vestir uma camisa Lanela" [ri]. Mas, claro, era uma campanha pequenina, ninguém se lembra. A Compal ficou.

Essa campanha da marca de camisas hoje seria um escândalo, iam dizer que estava a objetificar o homem e por aí fora.

[Ri] Se calhar, se calhar.

[Artigo corrigido às 17:50 de 01/08/2021: alterado "corporativismo" para "cooperativismo"]