Numa entrevista à agência Lusa, o coronel Carlos Penha Gonçalves disse que algumas vacinas já estão a ser administradas em centros de saúde, mas sublinha que o facto de a apresentação ser em frascos multidose também condiciona a passagem da totalidade do processo para os cuidados de saúde primários.

“Há uma condicionante prática e logística que tem que ver com o facto de a vacina ainda aparecer em frascos multidose, o que faz com que tenha de haver um processo de agendamento e uma certa concentração do horário. Não pode ser uma vacina tão oportunística como a vacina da gripe, que a pessoa vai ao centro de saúde e já que está ali é vacinada”, explicou o responsável pelo núcleo que coordena a vacinação contra a covid-19.

“Vai ter de haver um processo de agendamento e de chamada das pessoas especificamente para este processo enquanto tivermos estas apresentações da vacina em multidoses, que são desenhadas para vacinar muitas pessoas ao mesmo tempo”, acrescentou.

Quanto à logística que foi montada para a vacinação em massa, Penha Gonçalves disse que ainda são possíveis vários cenários: “Um em que se faça a vacinação periódica contra a covid-19 em períodos muito curtos de tempo e numa fração da população considerável, e se for assim provavelmente teremos de ter um sistema que dê alguma massificação para poder ser feito num prazo muito curto”.

“Há também um cenário em que, por causa da heterogeneidade do território, temos de recuperar para os centros de saúde muita dessa atividade. Nalgumas zonas do país não se justifica termos grandes centros de vacinação”,continuou, adiantando que o mais provável é manter-se “um sistema misto”.

“Vamos ter sempre de ter um plano para poder intervir em vacinação com mais concentração de esforços, porque pode ainda ser necessário”, afirma, insistindo: “Não conhecemos suficientemente os picos e a sazonalidade da doença, como conhecemos para a gripe, que nós conhecemos muito bem, mas que este ano veio mais tarde”.

“Assim que isto começar a ficar bem definido – e para o final do ano já teremos quase três anos de vagas da infeção – aí começamos a perceber qual é o comportamento sazonal, ou não, que a doença tem e, conjugando estes dois fatores, vai ser possível estabelecer com maior predição e maior antecedência o calendário [da vacinação]”, explicou.

O responsável do núcleo de vacinação da covid-19, que é doutorado em imunologia e investigador da Gulbenkian, acrescentou: “Também é um facto que, apesar de a vacina parecer ter uma resposta reativamente curta, isso parece ser um fator que depende da idade e nas pessoas mais novas pode ser que o período de proteção seja mais longo”.

“Os critérios para vacinar também dependerão destas análises”, acrescentou.

Sobre a preocupação com as mutações do vírus e a possibilidade de poder no futuro escapar à proteção das vacinas, afirmou: “Essa é uma preocupação que temos de manter presente. O vírus já mostrou por diversas vezes que nos surpreende. (…) À medida que o vírus viaja pelo mundo ele pode mudar a qualquer altura”.

Vacinação nas crianças terá impacto na relação entre gerações

O coordenador do núcleo de vacinação contra a covid-19 defende que a vacinação pediátrica vai ter um efeito a longo prazo na coesão entre gerações e que ajudou a reavivar o conceito de solidariedade coletiva.

“Vai ter efeito a longo prazo, que agora não conseguimos medir, muito benéfico para aquilo que é a perceção da importância da vacinação no nosso coletivo”, disse Penha Gonçalves.

O responsável afirmou que, apesar de as decisões das autoridades sobre a vacinação terem por base a perspetiva do benefício individual, ainda se lembra de ver na televisão crianças a dizerem que se vacinavam (contra a covid-19) porque queriam ver os avós e queriam protegê-los.

“Eu lembro-me muito bem de ver crianças a serem vacinadas e aparecerem na televisão a dizer que estavam ali porque queriam estar com os avós e queriam proteger os avós”, afirmou, sublinhando: “É uma coisa que vai ficar na nossa coesão coletiva intergeracional”.

“Quando forem pais vão-se lembrar disto e vão provavelmente ter a mesma racionalidade que tiveram desta vez”, acrescentou.

Penha Gonçalves, que é doutorado em imunologia e investigador da Gulbenkian, considerou que a capacidade que a ciência mostrou, com o desenvolvimento de vacinas eficazes em tempo recorde, reforçou a importância da consciência coletiva e da proteção de toda a comunidade.

“A capacidade que a ciência demonstrou em reagir a um problema que ainda estava a nascer, conseguindo combatê-lo com armas eficazes, veio dar uma credibilidade a toda esta consciência coletiva de que as vacinas realmente valem a pena”, afirmou.

A comprovar a valorização da ideia da proteção individual e coletiva conferida pelas vacinas está a maior procura de vacinas como a da gripe: “As pessoas que normalmente se vacinam [para a gripe] ficaram muito mais alertadas para as vantagens que tem a vacinação e isso aumentou a adesão à vacinação da gripe”.

“Também os profissionais de saúde aderiram muito mais à vacina da gripe. Aconteceu este ano e no ano passado”, recordou.

O responsável defendeu igualmente que é notório que, em todos os países onde a vacinação avançou, “a proteção das pessoas - especialmente as mais idosas, que morriam, que tinham doença grave - é muito grande e foi muito eficaz".

Em muitos casos, lembrou: “esta eficácia foi maior do que muitas outras vacinas que conhecemos e trouxe uma credibilidade muito grande para um processo que historicamente temos como um processo valioso, mas que as pessoas individualmente estavam a desvalorizar”.

“É um bocado paradoxal, pois à medida que vamos introduzindo as vacinas, as doenças desaparecem e as pessoas começam a criar a ideia de que, como a doença não existe, não é preciso vacinar”, explicou o responsável, insistindo: “Não vemos as doenças porque vacinamos as pessoas”.

Aponta os casos, especialmente na Europa, de algumas doenças infecciosas em crianças que tiveram surtos, como o sarampo, e afirma: ”A maior parte dos pais que têm crianças na Europa já não têm memória dessas doenças infecciosas porque foram protegidos pelas vacinas, mas isso não quer dizer que as doenças tenham desaparecido”.

“A prevenção em saúde é isso (…) as medidas que tomamos fazem com que elas [as doenças] se mantenham a níveis muito baixos, (...) e temos que as continuar a tomar”, concluiu.

Sobre o caso português, lembrou que há uma “cultura antiga de adesão à vacinação” e uma memória que “passa de geração para geração e que é importante continuar a passar”.

“A vacina é um ato individual, mas tem um reflexo coletivo (…) e, em sociedades em que esse cimento coesivo é mais visível, a vacinação foi mais fácil e Portugal é um exemplo”, considerou.

Penha Gonçalves realçou ainda que na sociedade portuguesa “o grande espírito de solidariedade foi bem visível na forma como as pessoas se vacinaram, para se proteger a si e aos outros" e concluiu: “Esta vacinação ajudou a reavivar esse conceito de solidariedade coletiva”.

* Por Susana Oliveira (texto) e Tiago Petinga (foto), da agência Lusa