Se é pai ou mãe, quase de certeza está num grupo de WhatsApp de pais da turma do seu filho ou do grupo de treino ou de outra coisa qualquer. Nesse caso, muito cuidado, porque há linhas vermelhas que não deve ultrapassar.

Nesta entrevista, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, autor do livro "Pais Suficientemente Bons", que já demos a conhecer aqui, faz um retrato da educação em Portugal através dos problemas que lhe vão chegando o consultório.

A procura pela perfeição pode trazer mais dissabores que conquistas e talvez, afinal, nada seja mais perfeito do que sermos como somos. Sobretudo na relação entre pais e filhos. E para que não restem dúvidas, Pedro Srecht não é só médico, é também pai de três filhos, dois rapazes e uma rapariga, entre os 16 e os 20 anos.

"Pais Suficientemente Bons". Existem?

Na perspetiva do conceito de Donald Winnicott [pediatra e psicanalista inglês], acho que existem. No sentido em que pode dizer respeito à maioria de nós, que obviamente temos uma preocupação normal, natural sobre os nossos filhos e desejamos que as coisas com cada um deles corram bem ou até, se quisermos, o melhor possível.

Mas também somos capazes de reconhecer que ser perfeito, não falhar nunca, ter uma disponibilidade infinita, são tarefas impossíveis. E também temos capacidade, acho que isso faz parte do conceito de pais suficientemente bons, de ir aprendendo com a experiência de ser pais ou mães. Mesmo perante os erros ou as dificuldades, esses pais são capazes de refletir e retirar dessas falhas aspetos positivos para poder continuar.

O que é muito mais difícil de existir são pais perfeitos, uma ideia ideia hoje, às vezes inconscientemente, muito presente nos adultos. Que depois projetam nos filhos a expectativa de poderem ser perfeitos, no sentido de serem mesmo os melhores ou os maiores em tudo.

"Não falhar nunca, ter uma disponibilidade infinita, são tarefas impossíveis"

Filhos perfeitos porque os pais foram perfeitos. É uma coisa recente ou foi sempre assim?

Penso que hoje há uma grande diferença em relação ao passado. E acho que isto, do ponto de vista social ou, se quisermos, do ponto de vista psicossocial, é uma mudança da última dezena de anos.

É por isso que o conceito de Winnicott, mesmo sendo do final dos anos 50, voltou a fazer imenso sentido neste contexto, porque criou-se uma expectativa muito grande sobre a resposta perfeita dos filhos. Como se o próprio desenvolvimento infantil e juvenil não tivesse, naturalmente, os seus entraves, as suas dificuldades, e as pessoas achassem que ter filhos ou vê-los crescer é uma estrada plana, sem cruzamentos, sem riscos ou perigos. E isso, de verdade, não existe.

Podemos dizer que há uma certa perfeição na imperfeição?

Sim, claro. Aliás, haver pontos de imperfeição é aquilo que nos torna humanos e que nos modera uma certa diferença perante aquilo que somos e o que querermos melhorar. Essa é a parte saudável, aceitarmo-nos ou termos uma expectativa saudável de melhorar é óptimo.

Querer atingir a tal utopia de perfeição é que, habitualmente, traz duas consequências muito frequentes, quer para os pais, quer para os filhos: uma imensa ansiedade para correr atrás de um horizonte que nunca se atinge e, em consequência, uma imensa noção de insatisfação. Depois começa a haver muito sentimento de angústia e, ao mesmo tempo, uma sensação quase depressiva por, afinal, não se chegar lá, a ideia de não ser suficiente, de falha ou de falta, tanto nos adultos como nos filhos.

No tempo dos meus pais a autoridade na matéria era o pediatra americano Benjamin Spock, no meu era Brazelton. Mas líamos umas páginas e pronto. Agora, é possível ler sobre educação e parentalidade em todo o lado, há uma série de "ajudas", mas pais e filhos parecem mais stressados do que nunca.

Exatamente, e tem toda a razão. Porque hoje, como disse, há uma panóplia imensa de autores, de conselhos, e a Internet com um mundo quase infinito de informação sobre o que fazer e como fazer da maneira mais adequada. Só que depois acontece uma coisa comum: perante tanta informação muitos não têm a capacidade autónoma para muitos para fazer um filtro e retirar dali conhecimento ou uma certa sabedoria.

Disse uma coisa que achei graça: "líamos umas páginas e pronto". E isso é um movimento muito importante, a pessoa lê e integra, naquilo a que chamo o uso consciente do self, um termo um bocadinho técnico, mas que significa que depois, no dia-a-dia com os miúdos, os pais também estão numa posição em que se oferecem tal como são. Claro que com parte dessa informação e desse conhecimento integrado, mas numa atitude espontânea e natural.

O que noto, às vezes, é que os pais assimilam toda a informação e põem-se numa interação quase que by the book com os filhos: ele respondeu assim, vou reagir assim, como diz na página xis do capítulo das birras. Fez aquilo que vem na página ípsilon sobre a adolescência, vou responder isto. E isso quase nunca resulta, desde logo porque tira a espontaneidade toda da relação. Mas tira também a aprendizagem a partir daí, tenta passar a generalidade para a individualidade de cada miúdo, de cada contexto. E também tenta responder um bocadinho àquela ideia, que é falsa, das fórmulas mágicas. Ironizando, é um pouco como um livro "As 101 dicas para ser boa mãe ou bom pai". É demasiada informação e, em vez de ajudar, baralha.

"Criou-se uma expectativa muito grande sobre a resposta perfeita dos filhos"

É um pouco como procurar efeitos secundário na bula dos medicamentos?

É um pouco isso. Às vezes dou este exemplo a alguns pais, às vezes a alguns adolescentes: se eu procurar na net algo como "pele, pintas vermelhas" pode aparecer sarampo, pode aparecer picada de mosquito, pode aparecer alergia alimentar. Podem aparecer 'n' coisas e todas estão certas. Mas falta o contexto. Para ser sarampo é preciso ter febre altíssima, começar com amigdalite; para ser picada de mosquito as borbulhas são pontuais e habitualmente nas zonas mais expostas do corpo. É preciso saber triar a informação.

De facto, hoje, e até com a melhor das intenções, chega-me aqui gente à primeira primeira consulta já quase com um diagnóstico feito através da informação que recolheu. E que depois torna difícil adequar. Isso, de facto, só complica.

Com que tipo de problemas chegam habitualmente os pais ao seu consultório?

Duas ou três grandes questões, muito relacionadas com o comportamento, muito ligadas ao desafio, à oposição, à dificuldade de integração das regras e dos limites, à má gestão da frustração e da contrariedade. Muito ligado a isso, algumas dificuldades de integração e de relação social dos miúdos.

Também como preocupação muito intensa expressa nos pais vem o desempenho dos filhos do ponto de vista académico, escolar. E, claro, imensas circunstâncias - o que é normal, mas estamos cá para ajudar a desconstruir -, valorizando muito um sinal ou sintoma, por vezes com dificuldade em fazer a ligação às causas que lhe estão subjacentes.

E no caso dos miúdos, que problemas apresentam?

Varia muito, mas há muitas perturbações de ansiedade, que num tempo pós-Covid aumentaram bastante. E as perturbações depressivas, mais na adolescência, muitas delas com os comportamentos hetero ou auto-agressivos, mutilações. E uma coisa que aparece muito nos miúdos, que é uma mistura de uma parte depressiva com situações, diria assim, de pequenos burnouts (referem muito o cansaço, a exaustão, queixas de sono, alimentação).

Os miúdos, por norma, têm aquilo a que eu chamo uma óptima energia vital: são mexidos, ativos, curiosos e querem fazer coisas, descobrir. E, de facto, essa vitalidade, hoje, sobretudo aqui em consulta, está um pouco ausente em muitas crianças e adolescentes. São miúdos que, em várias circunstâncias, aqui também numa outra referência, entre aspas, parece que carregam o mundo às costas, fazem um esforço muito grande no seu dia-a-dia, no seu desempenho, para estar, para ser, para se relacionarem com os pais e com os outros.

"Uma coisa que aparece muito nos miúdos é uma mistura de uma parte depressiva com situações de pequenos burnouts (cansaço, exaustão, queixas de sono, alimentação)"

O que observo, e não é só em crianças e adolescentes, é também em jovens adultos, é uma espécie de tristeza. É real?

Em muitos, e isso é outra faceta, aparece também uma dose muito grande de insatisfação. São imensos os casos, cada vez mais - e penso que vai ser ainda mais definitivo nos próximos anos -, em que crianças e adolescentes crescem numa posição, diria assim, omnipotente: "Eu quero. Agora".

Portanto, todas as "pequenas" contrariedades, frustrações absolutamente normais do dia-a-dia, são interpretadas de uma forma negativa. E voltamos ao que estava a dizer há pouco: por muito que tenham, parece que falta sempre qualquer coisa. Essa sensação de insatisfação traspassa muito. Há muita dificuldade em perceber que as coisas se vão construindo, ninguém começa a trabalhar no emprego da sua vida. E na geração já depois dos 20 isso também se sente bastante e no futuro vai tender a aumentar.

A falha e a frustração nos miúdos são muitas vezes entendidas como algo negativo por parte dos pais. Mas são importantes para um crescimento saudável?

A frustração é necessária, também. Essa ideia da frustração, hoje em dia, aparece muito confundida na cabeça de imensos pais, ainda numa perspetiva mais intensa, que é como um trauma. Então, não se pode traumatizar a criança. E confunde-se pequenas contrariedades e frustrações, que ajudam a crescer, com a ideia de trauma, que é uma coisa completamente diferente.

Dou-lhe outro exemplo. No Dia do Pai, estava aqui a falar com uns pais e, claro, perguntei: "Então, hoje já foi ao jardim de infância por causa do Dia do Pai" (porque há sempre aquelas atividades na escola). O pai ficou a olhar para mim com um ar circunspeto: "Por acaso, não. Na escola dos meus filhos a política é não fazer nada no Dia do Pai e no Dia da Mãe". "A sério?", perguntei. "Porquê?" "Porque dizem que pode haver alguma criança que não tem pai ou mãe e, assim, não vai ficar traumatizada".

Bem, para começar, uma criança não ter pai ou mãe é uma condição rara. Por outro lado, se os miúdos não têm pai ou mãe, até precisam de ser ajudados a canalizar esse afeto. A quem querem dar a prenda? Ao avô, à tia? Querem guardar para eles ou pôr ao pé de uma fotografia que têm lá em casa? Mas o que emerge aqui é que melhor é nem se falar no assunto, porque assim nunca se falha, não há hipótese de ter alguém fora da forma.

"São imensos os casos, cada vez mais, em que crianças e adolescentes crescem numa posição omnipotente: "Eu quero. Agora""

Essa coisa de ser tudo igual, tudo standardizado, estamos no bom caminho? Já não se canta "atirei o pau ao gato", a coleção de livros "Os Cinco", de Enid Blyton, foi proibida lá fora. Esta mania do politicamente correto faz sentido?

Acho uma parvoíce. Isso é querer transformar tudo numa espécie de linguagem neutra. Mas, esperem, o mundo não é neutro. Porque a ideia do politicamente correto ou do emocionalmente correto distorce imensas vivências que são naturais nos miúdos.

Outra ideia que acontece imenso, sobretudo nos pequeninos, na escola primária, por exemplo: hoje é muito comum uma criança fazer anos e convidar a turma toda para a festa de aniversário em vez de selecionar alguns que são os seus amiguinhos. Se quer fazer uma coisa com a turma toda, ok, há meninos que até levam um bolinho para a escola. Mas a festa pode muito bem ser mais reduzida, com o grupinho de amigos mais próximos. "Mas assim estou a excluir os outros". Esta preocupação, que corresponde a um preconceito, baralha e desajuda muito mais do que ajuda. Não é tudo a mesma coisa.

Além disso, os pais têm hoje mais dificuldade em disciplinar?

Muito mais, e isso tem a ver com várias questões. Por um lado, muitos pais acabam por estar menos tempo efetivo com os filhos do que desejariam. Pai e mãe trabalham, não chegam propriamente cedo a casa, muitos até têm mais do que um emprego. Tenho um pouco a ideia de que quando estão com os filhos, até para não terem de enfrentar, de contrariar, abdicam bastante das regras e dos limites, às vezes até numa atitude de sobre-proteção.

Isto dá crianças progressivamente mais exigentes na expectativa, cada vez mais difíceis, até perante as regras normais do dia-a-dia, como fazer os trabalhos, tomar banho, hora de dormir. Depois, num crescendo, podem tornar-se cada vez mais reivindicativas e, na adolescência, serem miúdos agressivos para os pais, ao ponto de os maltratarem emocional e fisicamente.

"Há uma interferência excessiva e desadequada dos pais em questões da relação dos filhos com os outros"

Os pais têm medo de que os filhos não gostem deles?

Sim. Como se os filhos gostarem deles não implicasse, mesmo aos olhos das crianças, num ou noutro momento os pais serem, entre aspas, a bruxa má ou o chato que está sempre a contrariar ou a chamar a atenção. Porque também faz parte.

Procuro, de maneira tranquila, dar aos pais a ideia de que há questões de autoridade que funcionam numa noção protetora. Ou seja, imagine uma criança que está na praia e quer muito ir ao mar, mas estão umas ondas enormes e bandeira encarnada; mesmo que a criança esperneie ou faça uma grande birra, tenho de ser suficientemente seguro para não a deixar ir ao banho. Estou a exercer a minha autoridade, mas estou a fazê-lo numa noção protetora.

Quando digo a uma criança pequenina "são nove da noite, é hora de ires para a cama", aos olhos dela posso estar a ser chato, aborrecido, mas se não marcar regras e limites, ela não tem capacidade de auto-regulação, no outro dia vai estar cheia de sono, não vai conseguir desempenhar as tarefas que tem de desempenhar, vai estar de mau humor.

"Confunde-se pequenas contrariedades e frustrações, que ajudam a crescer, com a ideia de trauma, que é uma coisa completamente diferente"

Falou na automutilação. Estes comportamentos estão a aumentar ou apenas temos essa sensação porque há mais diagnóstico?

Penso que a automutilação se vê mais, tanto em rapazes como em raparigas - no pós-Covid viu-se imenso. Também se vê muitas situações de um certo sentimento depressivo ligado à ideia suicida e ligado à efetivação de comportamentos de automutilação, num modelo que sugere apelo, diria assim. E ainda bem, porque, apesar de tudo, quando uma rapariga ou um rapaz se corta, os cortes são suficientemente superficiais, a gravidade também é menor.

É uma chamada de atenção?

Pode funcionar como um ato com um lado apelativo, sobretudo em adolescentes que têm muita dificuldade em não se sentirem sempre o centro ou o foco das atenções perante o grupo. Se eu também estiver mal, ou se estiver muito mal dentro do mal que de verdade me sinto, vou ter mais pessoas a olhar para mim, a cuidar de mim. E, de facto, em diversos contextos tem também esse significado, sim.

A que sinais é que os pais, professores, amigos devem estar atentos?

Nestas situações acho que há sempre uma ligação entre sinais e sintomas. Por um lado, há adolescentes que claramente têm mesmo a parte mais depressiva, no sentido de uma auto-imagem ou de um autoconceito negativo, muitos deles acabam por ter dificuldades de integração de grupo ou de integração social. Alguns deles, quer isso corresponda ou não, descrevem também questões ligadas às orientações e às identidades de uma forma mais marcada.

Na verdade, há miúdos que até se mutilam no espaço escolar. E aí a situação é facilmente reconhecível, porque muitas vezes há outros miúdos que notam e que reportam. Nesses casos, os professores podem e devem atuar, as escolas têm psicólogos, há um diretor de turma e deve haver sempre uma coordenação, não só entre aquilo que a escola observa e valoriza, mas na articulação com a família e, como é óbvio, com serviços especializados, se for caso disso. Mas acho que a primeira ponte é sempre com a família.

Há situações que acontecem em casa e que os pais não notam ou não valorizam. Por exemplo, as automutilações podem ser escondidas pela roupa.

"A ideia do politicamente correto distorce imensas vivências que são naturais nos miúdos"

Disse que as crianças e os adolescentes se sentem cansados e sob pressão. Lembro-me da chatice que eram as férias grandes, não ter nada para fazer. O vazio, o ócio são importantes também na vida dos mais novos?

Sim, sim, esse é um ócio bom, digamos assim. Falo disso no livro, também. No geral, as pessoas têm muito medo do vazio, na vida e na relação com os filhos. Então, preenchem e sobre-preenchem os horários. De uma maneira ou de outra, há imensas crianças e adolescentes, tal como adultos, em atividade continua, mesmo que sejam coisas muito pouco significativas.

"Vai ter 15 dias de férias, que programa é que vai fazer? Temos que arranjar um programa". Quando às vezes, na adolescência e até na infância, ter tempo livre sem qualquer desígnio antecipado é óptimo, ajuda-nos a integrar o que vivemos mesmo sem estarmos a reparar nisso, ajuda-nos a pensar e a querer descobrir outras coisas, a fazer um balanço entre o tempo de ativação, trabalho e descanso. Nesse aspeto, o ócio é muito saudável e cada vez mais necessário.

E é engraçado, porque como há muitas crianças e adolescentes habituados desde pequenos a viver nesse modelo em que tudo está demasiado pré-determinado, quando surgem momentos em que não há nada para fazer ficam angustiados, como se precisassem de uma ordem externa para cumprir uma atividade, como se necessitassem de uma constante organização e orientação externa para saber o que vão fazer a seguir.

Ao terem o tempo pré-estabelecido, não estão a viver de uma maneira mais livre, mais natural e também criativa.

Há uma agressividade que pode ser considerada normal e até positiva nos jovens e nas crianças?

Pode haver uma expressão boa ou adequada de uma agressividade normal, quanto mais não seja como forma de resposta a alguma coisa externa, invasora ou traumática (aqui sim), e que funciona como forma de defesa psíquica. Dou um exemplo: acontece com muita frequência os miúdos serem vítimas de bullying, não só na escola, mas nas redes sociais. Muitas vezes, são crianças e adolescentes que têm muito pouca capacidade de defesa, ou seja, têm muito pouca capacidade de canalizar uma agressividade normal, digamos assim, de defesa. E ficam demasiado passivos e expectantes perante situações externas.

Mas isso também acontece porque em muitas circunstâncias foram demasiado protegidos, o adulto resolveu situações incómodas por eles. Por exemplo, um menino está a brincar num parque e vem outro e tira-lhe a bola. Ele pode ir atrás da bola, dizer que é dele e recuperá-la. E vai aprendendo a defender-se e a interagir. No entanto, é provável que em muitos parques esta situação aconteça e haja adultos a interferir: "Tiraste a bola ao meu filho, isso não se faz, tens de aprender a partilhar". Estão a fazer o trabalho que compete à criança.

"A saúde mental continua a ser o parente pobre. As respostas são curtas, sobretudo na área da saúde mental infanto-juvenil, e estão bem aquém das necessidades"

É preciso deixá-las discernir, fazer a sua escolha?

Sim. Porque muitas crianças, e adolescentes também, acabam por ter pouca capacidade de defesa autónoma. Quando falo numa resposta normal da agressividade não falo em andar aos murros, falo de qualquer coisa que é sentida como difícil, ameaçadora ou até mesmo agressiva. E saberem defender-se de uma maneira mais adequada.

Outra questão que está muito ligada a isto, e que me preocupa imenso, é ver pais em grupos de WhatsApp, e falo de pais de meninos de primeiro ciclo, quanto mais dos crescidos, a confrontarem-se entre si para resolver problemas dos miúdos - porque uma chamou pirosa a outra ou porque a outra chamou mentirosa a alguém. Já vi estas mensagens de telemóvel. Hoje há uma interferência enorme dos pais em coisas que são exclusivamente dos miúdos.

Então no espaço escolar isto é brutal, um pai que entra na escola para falar com um menino de 12 anos que foi chato, bateu no outro, zangou-se num jogo de futebol. Isto acontece cada vez mais. E passam o dia inteiro - que vida terão? - a enviar mensagens em grupos de pais no WhatsApp. Problemas que, se calhar, os miúdos resolvem entre eles mais rapidamente. Os filhos voltam a ficar amigos e os pais continuam chateados.

Os miúdos resolvem os conflitos entre si. Quanto mais não seja, até se zangam para sempre, mas vão criando essa capacidade saudável de resolver problemas sem ser preciso a interferência do pai ou da mãe ou do grupo de WhatsApp.

Hoje, não política, fala-se muito em linhas vermelhas. Aqui não há linhas vermelhas?

Devia haver. Ainda um destes dias assistimos à cena do treinador do Porto, Sérgio Conceição. a invadir o campo para ameaçar um árbitro, num torneio de sub-8 onde estava a jogar o filho mais novo. Há uma interferência excessiva e desadequada dos pais em questões da relação dos filhos com os outros e até com a autoridade, nomeadamente do professor, da escola, do árbitro ou do treinador da equipa.

Desta maneira, sobre-protege-se os miúdos e retira-se poder à autoridade, dando aos filhos uma força enorme para, muitas vezes, continuarem a agir e a fazer o que bem querem. O problema é que depois - e isto é muito comum -, isso reflete-se contra os próprios pais, com os miúdos a crescer até fisicamente para eles quando ouvem o que não gostam.

Tem três filhos adolescentes. Como olham para o pai pedopsiquiatra?

Em casa sou pai. E como pai também não sou prefeito - como médico também não, como é óbvio. Mas acho que em casa me comporto como pai e os meus filhos não têm nenhuma noção, digamos assim, dessa diferença.

Em situações sociais já me aconteceu ter de filtrar um bocadinho e ajudar a diferenciar a minha posição pessoal da profissional, o que, já agora, é uma uma coisa muito importante (já lá vou) para marcar as tais linhas vermelhas. Às vezes, numa festa ou num treino de futebol, lá vem um pai ou uma mãe expor um problema. "Peço desculpa, mas estou aqui como pai".

"Na minha opinião há crianças e adolescentes excessivamente medicados"

É importante ter cada coisa ter o seu lugar?

Como as regras para a relação entre pais e filhos, é importante dividir bem o que é espaço pessoal e espaço profissional. No pós-Covid, em que as pessoas começaram a fazer muito teletrabalho, muitas vezes estão de férias com os filhos e estão a despachar emails, ou estão à mesa e ainda vão fazer uma reunião online.

Há muitos miúdos que se queixam, verbalizam das mais diferentes formas, de questões que têm a ver com o facto de os pais estarem presentes fisicamente, mas não estarem disponíveis emocionalmente. "Ah, o meu pai levou-me ao jogo de voleibol, mas quando lhe perguntei o que tinha achado, disse que não viu, estava no computador a trabalhar".

Gostava de falar do relatório final da comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja. Passou mais de um ano, acha que já foi feito aquilo que tinha de ser feito?

Não. Mas prefiro não juntar aqui as matérias. Acho que há imenso para fazer, aliás, basta olhar para o relatório e ver as recomendações finais que deixámos, quer à Igreja católica, quer à sociedade civil em geral, para ver que ainda há muito pouco que, na prática, tenha realmente mudado para a construção de uma cultura diferente em relação aos abusos das crianças - não só na igreja, mas na sociedade em geral.

Sim, porque quase 90% dos abusos acontece em casa.

Os abusos perpetrados por pessoas da Igreja são uma percentagem ínfima. A maior parte dos abusos acontece em meio familiar. Mas deixámos algumas notas sobre isso, porque implicaria outros estudos e outras intervenções e, sobretudo, outra cultura.

Nos últimos anos, há um aumento das notificações de casos de abuso sexual de crianças à PJ [Polícia Judiciária]. Com um grande aumento de situações ligadas ao uso das novas tecnologias. Por um lado, e ainda bem, as pessoas reportam mais, mas tem havido, de facto, um aumento bastante acentuado nos dois últimos anos.

E sim, a esmagadora maioria dos abusos é de adultos que são próximos das vivências do dia-a-dia das crianças, acontece debaixo de tetos que lhes são conhecidos e familiares.

Essa também é uma das razões que facilita a perpetuação do silêncio e da incapacidade de muitas crianças e adolescentes falarem, de saírem dessas teias, que são teias relacionais, onde para além do mais o adulto que é abusador se apresenta com outras facetas que até podem ser adequadas e positivas. É o tio, é o padrasto, é o avô, que também aparecem com facetas fantásticas.

Quais são os sinais, como se pode prevenir uma coisa assim? E como evitar uma certa paranóia cada vez que há um gesto?

Pode acontecer isso. Ainda para mais nós somos um povo fisicamente próximo, não somos distantes como os nórdicos ou os anglo-saxónicos. Se as coisas não forem bem interpretadas, pode haver esse risco. Claro que também pode haver outro risco, que é perante a dificuldade em perceber que estas situações existem e que podem ser realmente graves, haver muitas circunstâncias em que as pessoas não vêem, também porque é uma evidência difícil, às vezes nem com a evidência as pessoas querem acreditar.

É verdade que, como acontece muitas vezes com quem é alvo de violência doméstica, a vítima pode tornar-se agressor?

Há pessoas que podem repetir o padrão, fazer a chamada perpetuação transgeracional e, portanto, serem as vítimas a vitimizar. Mas não é nada linear. Hoje há muitos miúdos que, com algum apoio, conseguem reverter a situação e, justamente por terem sido abusados, tornam-se grandes protetores de crianças abusadas e canalizam um grande ódio para tudo o que podem ser eventuais abusadores.

Voltando à conversa anterior e à pressão sentida por crianças e jovens, as doenças mentais são uma das prioridade do Programa Nacional de Saúde. O que fez o SNS nesta matéria nos últimos anos?

Na prática, acho que a saúde mental continua a ser o parente pobre. As respostas são curtas, sobretudo na área da saúde mental infanto-juvenil, e estão bem aquém das necessidades. A sul do Tejo, por exemplo, há pouquíssimas pessoas na área da pedopsiquiatria e há também uma enorme carência em todo o país. É por isso que os tempos de espera nas grandes cidades são enormes.

Quem não tem dinheiro não tem hipótese?

Infelizmente, como se fosse uma coisa a que só as pessoas com melhor condição social e económica pudessem ter acesso.

Prescrevemos demasiados medicamentos para a saúde mental das crianças e jovens? Porquê?

Prescrevemos. De facto, o que sinto é que com a falta de técnicos, de pedopsiquiatras e de psicólogos, as pessoas acabam por ter pouco tempo para fazer acompanhamentos psicoterapêuticos e usam a resposta farmacológica para tentar conter sinais e sintomas, mas não propriamente para resolver os problemas.

Existe alguma indicação, nacional ou internacional, para limitar a prescrição de psicofármacos a crianças e adolescentes em Portugal, campeão na prescrição de ansiolíticos e antidepressivos?

Que eu saiba, não. Devia haver uma indicação moral, ética e também prática em relação a isso, porque na minha opinião há crianças e adolescentes excessivamente medicados, e isso não quer dizer que estejam a ser bem tratados do ponto de vista clínico, no geral.

Em nós tudo é somatizado?

Nem tudo, mas o que é inegável é a ligação entre corpo e a mente, e nos dois sentidos. Somos uma unidade, não há uma coisa sem a outra. Uma das grandes falhas, sobretudo nos anos ou nas décadas anteriores, foi que cada vez mais a nossa visão sobre a saúde e a doença se tornou excessivamente setorizada, perdeu a ideia global da pessoa como um todo.

Falou diversas vezes no Covid. Os efeitos da pandemia são irreversíveis, digamos assim, ou é possível recuperar?

O que está, está. Acho é que há coisas que, obviamente, também se podem recuperar. Mas não se pode estar, ou não se devia ter estado, na expectativa de que os miúdos que estiveram praticamente dois anos em casa chegassem à escola com a mesma disponibilidade, como se tivessem estado em casa sem fazer nada, e vamos lá agora dar as catadupas de matéria que faltou dar para trás.

Como se o estar em casa sem fazer nada equivalesse a ter estado de férias, tranquilos, bem-dispostos, e não em situações desagradáveis e de tensão, que os miúdos também não pediram. Temos de ajustar a nossa expectativa à realidade concreta desses miúdos e ajudá-los a desenvolver capacidades, além das puramente académicas, que são muito importantes. A mim preocupou-me mais a perda de competências sociais do que a perda de competências académicas.

Coimbra de Matos dizia que nos define mais o prazer, a alegria e a felicidade do que a dor. Concorda?

Foi meu chefe de equipa muitos anos. Concordo que devemos procurar celebrar as coisas que nos dão gosto e prazer de viver, de estar, de crescer, em vez de contribuir para uma cultura do negativo e do horror que hoje se passa imenso para os mais novos. Muitos adolescentes têm integrada a ideia de que o futuro vai ser mau. Em várias áreas.

Por acaso vi uma reportagem na SIC sobre duas escolas em que foram abolidos os telemóveis no espaço de recreio. E depois, na Conde de Oeiras, os miúdos do quinto e sexto anos a ensinarem os mais pequenos a andar de bicicleta, as miúdas criaram um atelier de croché, outros passaram a levar bola e a fazer jogos nos intervalos. Os jornalistas falavam com os miúdos e eles estavam mesmo contentes por aquilo estar a acontecer.

Já falámos disto: somos um povo traumatizado?

Acho que somos um povo que ainda tem uma carga culturalmente e socialmente negativa. Traumatizados todos os povos foram, em certa medida, mas nós ligamo-nos muito a isso. Tenho muita pena de ver e de viver num país que avança com imensa dificuldade e que tem áreas onde parece que, de maneira crónica, não melhora.

Também por isso me custa ver imensos miúdos que chegam a determinada altura, faculdade ou pós-faculdade, e vão embora. E a enorme maioria dos que vão embora não voltam, porque de várias maneiras encontram condições que são melhores, mais agradáveis, lá fora. Essa é a parte que a mim me traumatiza [ri].