Enquanto o calendário gregoriano é regulado pelo sol, o calendário islâmico rege-se pela lua. E o nono mês, o Ramadão, é diferente para os muçulmanos. Não começa sempre na mesma data, varia entre 29 ou 30 dias e os hábitos e tradições repetem-se entre os crentes, que assinalam os dias em que o Alcorão foi revelado, por fases, a Maomé.

"A palavra Ramadão deriva da expressão 'ramida', que significa ardente. É simbólico para nós, é um mês muito especial", começa por dizer Khalid Jamal, Senior Advisor da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), ao SAPO24.

"Jejuamos enquanto é dia, ou seja, os muçulmanos têm a obrigatoriedade de se abster de comer, beber, fumar e praticar relações íntimas nesse período". No passado, esse tempo era calculado "só em função do sol e hoje é um bocadinho mais rigoroso, já que começa com a aurora, período ligeiramente anterior. Portanto, só podemos comer qualquer tipo de alimento ou beber após o pôr-do-sol, que simbolicamente celebramos com uma oração, a Salat Maghrib, que é habitual todos os dias, mas que este mês ganha um significado diferente e maior", explica.

"Há um sacrifício físico que o jejum impõe, mas esse sacrifício traz algo muito maior"

Entre a comunidade, estes preceitos são vistos "com bastante facilidade e ligeireza", até pelos mais novos. "No passado, tínhamos de observar o sol para saber as horas do jejum. A uma dada altura, o Observatório Astronómico existente, por exemplo, na Arábia Saudita, fazia a amabilidade de nos dizer a hora exata do início e do término do jejum. Hoje, há uma aplicação, chamada Muslim Pro, usada pelos muçulmanos praticamente a nível mundial, que não só sinaliza e envia uma notificação a cada vez que está na hora das orações e de quebrar e de iniciar o jejum. Temos de perceber que vivemos num mundo cada vez mais exposto à tecnologia e que a religião tem de acompanhar e de estar de braços dados. A aplicação tem uma praticidade muito especial. A comunidade continua a emitir um calendário do mês do Ramadão, com o início das horas das orações em congregação. Mas hoje em dia perde importância porque há este tipo de aplicações que tornam a nossa vida mais fácil".

Um jejum que não é uma dieta da moda

Este ano, o Ramadão começou a 10 de março. Mas, ao contrário do que se possa pensar, não é considerado um mês apenas difícil para os muçulmanos. "É verdade que há um sacrifício físico que o jejum impõe, mas esse sacrifício traz algo muito maior, que é um benefício amplamente espiritual", nota.

"O jejum não é simplesmente uma abstenção de comer, porque assim seria jejum intermitente e podia ser uma dieta"

Nesse sentido, Khalid Jamal aponta três dimensões do jejum. "Primeiro, sentir a omnipresença de Deus. Eu posso esconder-me num quarto e comer sem que alguém me esteja a ver, mas eu tenho de ter sempre presente, como muçulmano e crente que sou, que Deus está a observar-me. Em segundo lugar, passar por algo voluntariamente que outros passam por força da necessidade, isto é, não nos podemos esquecer que ainda há pessoas em algumas zonas do globo, como em África, hoje na Palestina e na Ucrânia, fruto de guerras e de outras vicissitudes, que ainda sofrem do flagelo da fome. E, em terceiro e último, a renúncia é vista como um caminho para a libertação, ou seja, acreditamos enquanto crentes que qualquer sacrifício e qualquer renúncia tem sempre um benefício".

"Por isso, o jejum não é simplesmente uma abstenção de comer, porque assim seria jejum intermitente e podia ser uma dieta, que hoje é uma prática muito popular e muito recomendada recentemente até como forma eficaz de perda de peso. Muitos dizem que o jejum também tem inúmeros benefícios científicos, porque faz-nos consumir a gordura que o organismo já tem e faz com que nos libertemos das toxinas e de algumas matérias prejudiciais. Tem múltiplos fins e benefícios e nós fazemo-lo de forma entusiasta. O jejum com fim religioso é acompanhado da intenção de cumprir com o mandamento de Deus", especifica.

Porém, um sacrifício é sempre um sacrifício. "É óbvio que é custoso. Somos seres humanos de hábitos e, quando estamos ali à hora de almoço, sentimos fome. Estamos habituados a tomar o pequeno-almoço, a almoçar, a lanchar, e essas refeições são supridas em favor de uma única refeição depois do pôr-do-sol e de uma outra que alguns fazem de madrugada, antes de iniciarem o período do jejum obrigatório".

"Numa comparação infeliz, costumo dizer que é como fazermos uma direta. Nessa circunstância, sentimos que temos sono. Mas há ali uma dada altura, ainda que seja um momento ligeiro ou efémero, em que sentimos que ultrapassámos a barreira do cansaço. Aqui sentimos que quando deixamos de nos preocupar com a satisfação de uma necessidade primária ou fisiológica — e consumimos muito tempo nas refeições, a pensar no que vamos comer, nos restaurantes, seja o que for — conseguimos ter mais tempo para que o nosso foco seja a espiritualidade. Esse é o grande propósito do Ramadão", nota Khalid Jamal.

O jejum toca a todos?

Apesar de todas as regras que se aplicam "indistintamente" no Ramadão, a verdade é que também existem exceções no que diz respeito ao jejum.

Assim, há "duas únicas exceções". A primeira diz respeito às "crianças que ainda não tenham atingido a puberdade", que marca "o critério de maioridade" para os muçulmanos. "Aqueles que ainda não atingiram a puberdade não se consideram adultos e nesse contexto estão dispensados da obrigação de jejuar", aponta Khalid Jamal. Em segundo lugar surgem "as pessoas que não têm saúde". E dá um exemplo: "um diabético é aconselhado pelo médico a não jejuar, mas há pessoas que o fazem. É um critério individual de cada um, a pessoa é livre de poder fazê-lo ou não".

"Só em casos de saúde e de força extrema é que a pessoa pode não jejuar"

Todavia, as exceções levam a que exista "um instrumento que permite que quem não jejue compense essa ausência pagando a fidyah, uma espécie de tributo".

"O critério é muito simples: calcular o custo de uma refeição diária e alimentar quem mais precisa. No fundo a pessoa pega nessa quantia, faz um somatório dos 30 dias do mês, e dá esse valor para a caridade, para alimentar quem mais precisa. Como se costuma dizer, a intenção é que conta, por isso é uma forma simbólica de compensar o facto de não se jejuar", frisa.

Mesmo existindo esta forma de compensação, a mesma não pode ser usada para fugir ao jejum em qualquer circunstância, já que esta é uma prática obrigatória no Islão. "Só em casos de saúde e de força extrema é que a pessoa pode não jejuar, não é uma opção".

"Diz-se também que o jejum é feito para Deus. Enquanto há outras ações que são feitas também em prol da sociedade, o jejum cria uma relação de proximidade entre o crente e o criador. Tanto assim é que as pessoas têm por hábito achar que quem jejua fica com mau hálito. Mas o Islão diz-nos que o hálito de um jejuador, para Deus, é melhor do que o cheiro do almíscar, um perfume muito usado na esmagadora maioria dos países árabes", nota Khalid, que considera este ensinamento "uma forma muito bela e mágica de traçar a relação entre o crente e o criador no Ramadão".

Uma comunidade que tem vindo a crescer

Apesar de Portugal ser um país de maioria católica, a comunidade islâmica tem crescido nos últimos anos. Um dos indicadores da Mesquita Central de Lisboa é o número de refeições que serve ao fim do dia durante o Ramadão. "Durante a hora do Iftar servimos cerca de 800 a 1000 refeições. Para além disso, temos cerca de outras 1000 que são distribuídas pelos locais de culto em todo o país, mais especificamente na área metropolitana de Lisboa".

"Estima-se que a comunidade em Portugal tenha cerca de 100 mil pessoas"

Assim, são "cerca de 2 mil refeições diárias, quase 60 mil refeições mensais", numa comunidade que "conta com 54 locais de culto espalhados em todo o país", fruto de um crescimento grande devido a "uma vaga de imigração de cidadãos oriundos do Bangladesh e do Paquistão, também da Índia e do Nepal".

"Hoje estima-se que a comunidade em Portugal tenha cerca de 100 mil pessoas, muito embora os censos que temos deem a indicação de estarmos ali entre os 60 e 70 mil, números oficiais. Com esse crescimento verificou-se também um movimento que é importante assinalar, que é uma espécie de êxodo dos grandes centros urbanos, seja da cidade, seja da periferia ou semi-periferia", refere Khalid Jamal.

Em Lisboa, por exemplo, a Mesquita Central de Lisboa já não alberga todos os muçulmanos: "a comunidade do Bangladesh situa-se muito na zona do Martim Moniz, com dois locais de culto que já lá tem, comunidade de cidadãos do Paquistão fica na Margem Sul, cidadãos portugueses mas com um background indiano, com passagem pelas ex-colónias, estão ou no centro de Lisboa ou noutras zonas, como Odivelas".

"Procuraram Portugal como um ancoradouro para melhores condições de vida"

"A comunidade cresceu e aquilo a que assistimos é uma prática comum em toda a Europa, também aconteceu em Portugal: os muçulmanos deixaram de se circunscrever aos centros urbanos e passaram a ir para outras zonas", evidencia.

E tudo aconteceu "talvez nos últimos 10 anos". "Quando a crise começou a ser ultrapassada, começámos a ver um crescendo de imigrantes e de pessoas que procuraram Portugal como um ancoradouro para melhores condições de vida".

E este aumento dos crentes é visível durante o Ramadão. "Há um fervor religioso próprio do mês que faz com que as pessoas se juntem. Em rigor, todos os muçulmanos vão à mesquita pelo menos uma vez por dia. Seja para quebrar o jejum, seja para fazer uma oração facultativa que temos da récita do Alcorão, diariamente à noite, após as cinco orações obrigatórias. É natural que no mês do Ramadão, se as pessoas fazem o sacrifício de jejuar e se querem incrementar a sua espiritualidade, o façam por via da frequência maior dos locais do culto, pelo que assistimos assim a um acréscimo bastante exponencial das idas aos templos", diz ainda Khalid.

Depois do sacrifício, a festa

Como o Ramadão é determinado pela observação da lua, as datas de início e fim são decididas sem grande antecedência. Este ano, o mês "termina entre terça e quarta-feira, 9 ou 10 de abril".

E, com o cessar do sacrifício, vem a festa. "O fim do Ramadão é marcado com uma celebração, o Eid al-Fitr, que se caracteriza por ser uma festa religiosa que é passada em família e que tem dois rituais muito importantes", explica Khalid Jamal.

"O que não se dispensa nesta altura é alguma fartura, até por conclusão de uma mês de sacrifício"

"O primeiro é uma oração facultativa que é feita na mesquita — há milhares de pessoas que nessa altura vão à mesquita — e segue-se um almoço em família, à semelhança do Natal para os cristãos ou qualquer festividade. Há uma troca de presentes e um menu especial por ocasião de um dia especial".

No que toca à gastronomia, um português católico pode ver algumas semelhanças com a Páscoa. "Nos países árabes são muito dados às carnes de caça, cabrito, carnes mais pesadas. Varia muito com a tradição de cada povo. E Khalid dá o seu exemplo: "Na minha família comemos uma perna de cabrito assada no forno, mas não é obrigatório que assim tenha de ser".

"O que se quer é essencialmente boa disposição, espírito de família, alguns doces são sempre bem-vindos. O que não se dispensa nesta altura é alguma fartura, até por conclusão de uma mês de sacrifício como foi o mês do Ramadão. Há todas as iguarias que fazem as delícias daqueles que celebram esta festa", conclui.